Além de fragmentária, aquela atitude freqüentemente adotada por médicos era vista como reducionista, pois o conhecimento médico nas diversas especialidades ressaltava as dimensões exclusivamente biológicas, em detrimento das considerações psicológicas e sociais.
A indignação diante da atitude freqüentemente reducionista e fragmentária dos médicos não levava os adeptos da medicina integral a antagonizar a medicina. Eles concebiam tais atitudes como sendo produzidas nas escolas médicas, através de um currículo que privilegiava o laboratório e o hospital como locus privilegiado de aprendizagem.
A crítica da medicina integral se voltava, portanto, para os currículos de base flexneriana.
Tais currículos eram dicotômicos: tinham um ciclo chamado de básico, voltado para o aprendizado do conhecimento das chamadas ciências básicas, feito predominantemente no laboratório, e no qual também se aprendia uma certa noção de ciência; e um ciclo profissional, voltado para o aprendizado da clínica, no qual se aprendia também um certo modo de lidar com os pacientes.
A crítica da medicina integral a esse arranjo curricular levou-a a propor reformas curriculares.
A idéia era criar novos currículos, transformando as escolas médicas em produtoras de médicos com atitudes menos reducionistas e menos fragmentárias, médicos que fossem capazes de apreender seus pacientes e suas necessidades de modo mais integral. As propostas de reforma curricular da medicina integral tomaram dois eixos básicos. De um lado, tratava-se de modificar radicalmente a acepção do que era básico, quer pela introdução de outros conhecimentos relativos ao adoecimento e à relação médico paciente, bem como relativos à sociedade e aos contextos culturais, quer pela valorização da integração desses conhecimentos básicos na prática médica. De outro, tratava-se de enfatizar o ensino nos ambulatórios e nas comunidades, lugares que, ao contrário das enfermarias, permitem mais facilmente o exercício de apreensão do contexto de vida dos pacientes.
E lugares que, quando comparados a um hospital de clínicas, talvez sejam menos plasmados pelos recortes das especialidades. Portanto, para a medicina integral, integralidade teria a ver com uma atitude dos médicos que seria desejável, que se caracterizaria pela recusa em reduzir o paciente ao aparelho ou sistema biológico que supostamente produz o sofrimento e, portanto, a queixa desse paciente. Atitude essa que deveria ser “produzida” nas escolas médicas. Relacionava-se, deste modo, com a boa medicina, ou melhor, com a boa prática médica.
Mas a medicina integral no Brasil ganhou traços peculiares, relacionados em parte a suas inserções institucionais. Aqui, o movimento de medicina integral não se consolidou como um movimento institucionalmente organizado, mas associou-se num primeiro momento à medicina preventiva, locus privilegiado da resistência ao regime militar e um dos berços do que seria posteriormente chamado de movimento sanitário. Podemos facilmente reconhecer traços da discussão típica da medicina integral em algumas reformas curriculares de escolas médicas nos anos 70 e 80, assim como no desenvolvimento de experiências como internatos rurais. Também podemos reconhecer as marcas deixadas pela medicina integral em alguns programas de medicina preventiva dos anos 80, nos quais os residentes se engajavam em práticas assistenciais. Mas essa proximidade com os departamentos de Medicina Preventiva também propiciou uma renovação teórica.
Nos anos 70 estava nascendo no Brasil a Saúde Coletiva, campo de conhecimento que se construía a partir de uma crítica à saúde pública tradicional, à medicina preventiva tal como proposta nos Estados Unidos, e a partir das contribuições do movimento de medicina social. Uma das premissas básicas da saúde coletiva era a de considerar as práticas em saúde como práticas sociais e, como tal, analisálas. Ao fazê-lo, a saúde coletiva foi reconfigurando o eixo de interpretação típico da medicina integral: os comportamentos dos médicos (e suas atitudes fragmentárias e reducionistas) não deveriam ser atribuídos exclusivamente às escolas médicas. Quer através de uma matriz de base no pensamento marxista, que ressaltava as mudanças nas relações de trabalho – a crise de uma medicina tipicamente liberal e o crescente assalariamento dos médicos –, quer através de uma leitura das articulações entre Estado, serviços de saúde e indústrias farmacêuticas e de equipamentos médicos – cristalizada na noção de complexo médico-industrial –, o peso atribuído às escolas médicas na produção daquela fragmentação e naquela postura reducionista foi sendo relativamente minimizado. Em conseqüência, para bem ou para mal, a transformação da escola médica deixou de ser uma estratégia privilegiada de transformação no movimento sanitário.
Por outro lado, ainda quando a Saúde Coletiva dava seus primeiros passos, desenvolveu-se um corpo de conhecimentos particularmente crítico às instituições médicas e às práticas médicas.
Autores como Foucault e Illich, críticos mordazes da medicina, e a ampla circulação dos trabalhos de Canguilhem, permitiram formular críticas à medicalização da sociedade e ofereceram subsídios para uma crítica ao saber médico e à sua racionalidade. Uma das conseqüências dessas contribuições para a versão brasileira da medicina integral é que a atitude fragmentária e reducionista pareceu a muitos ser decorrente da própria racionalidade médica e do projeto de cientificidade dos médicos, tipicamente moderno. Ou seja, para se produzir uma postura integral seria necessário superar alguns limites dessa medicina anátomo-patológica e, portanto, dessa racionalidade médica, que, diga-se de passagem, não se produz, mas se reproduz na escola médica. Essa leitura, entretanto, não foi homogênea; ela, ao contrário, produziu posições polares.
De um lado, alguns julgavam ser a medicina ocidental moderna essencialmente não-integral.
Estes transitaram ora pela tentativa de subordinar os médicos a uma racionalidade sanitária (ou epidemiológica), ora pela defesa do reconhecimento e incorporação de racionalidades médicas alternativas, supostamente mais amistosas à integralidade. De outro lado estavam os que, mesmo partilhando daquela crítica ao saber e práticas médicas, apostavam na desconstrução interna, feita de dentro das instituições médicas. Estes continuavam a perseguir o ideal da medicina integral, a defender as mudanças curriculares. É claro que entre essas posições polares existiam muitas posições híbridas. É interessante notar que, como resultante dessas posições polares, foi sendo construído um certo afastamento da Saúde Coletiva dos temas relativos à prática médica propriamente dita e, portanto, uma redução relativa da importância da noção de integralidade como uma atitude médica desejável, ou como característica da boa medicina. Isso se deu não tanto por rejeitar os valores intrínsecos, mas por incluir certos graus de ceticismo nas possibilidades de produzir socialmente tais atitudes no contexto das instituições médicas. A transformação das políticas, dos serviços e das práticas de saúde parecia passar por outras coisas além da boa medicina.
Como ícone desse afastamento, podemos recordar os intensos (e densos) debates ocorridos na residência em medicina preventiva nos anos 80. Primeiramente, ainda na primeira metade dos anos 80, o caloroso debate que resultou numa mais clara diferenciação entre as residências de medicina geral e comunitária (mais diretamente voltadas para o desenvolvimento de uma forma de praticar a medicina alternativa à prática fragmentária e reducionista tradicional), das residências de medicina preventiva, estas abrigadas no âmbito da saúde coletiva, e cada vez mais sanitárias.
Em segundo lugar, o debate, também caloroso, agora no âmbito interno das residências de medicina preventiva, acerca da importância da prática médica, ou melhor, do atendimento médico na formação dos residentes. Nesse aspecto, consolidou-se uma tendência de abolir o atendimento médico da formação em medicina preventiva. As residências pareciam se tornar cada vez mais residências em saúde pública, ou em saúde coletiva, e cada vez menos em medicina. Quanto ao último aspecto, cabe registrar algumas resistências, como a exercida pela residência da USP, que ousou caminhar num sentido diverso do da maioria dos programas de residência em medicina social, ao defender a importância de treinar e refletir sobre a boa prática médica. Mas aqui a integralidade já não era vista como uma atitude a ser desenvolvida exclusivamente na escola, mas algo que se produz na organização do processo de trabalho em saúde. Voltaremos a esse aspecto mais adiante.
O que importa destacar por ora é a tendência geral de afastamento da saúde coletiva da medicina, e da discussão acerca dos atributos da boa prática médica, contexto no qual emergiu o primeiro sentido de integralidade que destacamos neste trabalho. Mas isso não deve obscurecer a força desse sentido.
A postura médica que se recusa a reconhecer que todo o paciente que busca seu auxílio é bem mais do que um aparelho ou sistema biológico com lesões ou disfunções, e que se nega a fazer qualquer coisa a mais além de tentar, com os recursos tecnológicos disponíveis, silenciar o sofrimento supostamente provocado por aquela lesão ou disfunção, é absolutamente inaceitável.
Nesse sentido, cabe defender a integralidade como um valor a ser sustentado e defendido nas práticas dos profissionais de saúde, ou seja, um valor que se expressa na forma como os profissionais respondem aos pacientes que os procuram. Mas podemos aprofundar um pouco mais nossa reflexão sobre esse sentido de integralidade. Olhando a posteriori, podemos reconhecer marcas deixadas por essa démarche da medicina integral em vários sentidos de integralidade sutilmente distintos, sentidos que podem hoje ser revisitados de outra forma, a partir dos conhecimentos de que hoje dispomos. Comecemos pelo aspecto mais biomédico. Não podemos aceitar que um médico responda apenas ao sofrimento manifesto do paciente. É fato que as pessoas em geral procuram médicos e profissionais de saúde por apresentarem um sofrimento.
A razão da medicina, da qual extrai sua legitimidade social, é a capacidade de responder ao sofrimento humano. A biomedicina, na forma como se estruturou em nossa cultura, se ocupa dos sofrimentos atribuíveis às doenças. Ela desenvolveu um amplo conjunto de conhecimentos e técnicas voltados para reconhecer as doenças que produzem sofrimentos, e um conjunto de conhecimentos sobre as formas de enfrentar tais doenças. Mas o conhecimento da doença, em alguns casos, permitiu que a medicina se antecipasse ao sofrimento e, até mesmo, à doença.
Surgiram muitas técnicas capazes de reconhecer a doença antes que a mesma produza o sofrimento, e de reconhecer alguns fatores de risco que aumentam a probabilidade de adoecimento.
A aplicação de tais técnicas, chamadas usualmente de técnicas de diagnóstico precoce, e das medidas que podem reduzir os riscos de adoecimento não é demandada pela experiência individualizada do sofrimento. A atitude do médico, que, diante de um encontro com o paciente, motivado por algum sofrimento, aproveita para apreciar fatores de riscos de outras doenças que não as envolvidas no sofrimento concreto daquele paciente, e/ou investigar a presença de doenças que ainda não se expressaram em sofrimento, ilustra um dos sentidos de integralidade.
Note-se que nesse sentido específico se articula prevenção com assistência, mas não à moda história natural da doença, modelo adotado pela velha medicina preventiva, que tentava suprimir a distinção entre prevenção e assistência pelo simples enunciado de que tudo é prevenção.
Ao contrário, aqui se reconhece uma distinção fundamental na experiência do sujeito que se relaciona com o serviço de saúde: as atividades preventivas, posto que não derivadas diretamente da experiência individual de sofrimento, são profundamente distintas das experiências assistenciais, estas diretamente demandadas pelo usuário. Exatamente porque não demandadas pelo paciente, as práticas de diagnóstico precoce e demais práticas de prevenção devem ser exercidas com enorme prudência. Elas tipificam o processo de medicalização, pois o profissional deve sempre ter boas razões para aplicá-las. O termo medicalização é utilizado aqui para indicar um processo social através do qual a medicina foi tomando para si a responsabilidade sobre um crescente número de aspectos da vida social.
Nesse sentido, a medicina preventiva é altamente medicalizante, pois estende as possibilidades de aplicar com certa eficácia técnica os conhecimentos sobre a doença, para regular aspectos da vida social. Através dela, a medicina não só trata doentes; ela recomenda hábitos e comportamentos. Ela invade a vida privada para sugerir modos de vida mais saudáveis, ou seja, supostamente mais capazes de impedir o adoecimento.Reconhecer que as ações preventivas diferem radicalmente das assistenciais, posto que não são demandadas pelos usuários (pelo menos não antes que um amplo processo de medicalização inculque a necessidade de ações e serviços de saúde na população), implica que não basta simplesmente defender a utilização de tecnologias de diagnóstico precoce ou incentivar comportamentos supostamente mais saudáveis de modo articulado com as ações assistenciais.
Há que se diferenciar um uso dessas formas de intervenções preventivas que simplesmente expande o consumo de bens e serviços de saúde ou integra os dispositivos de sustentação da ordem social (através da regulação dos corpos) do uso judicioso e prudente dessas mesmas técnicas de prevenção, feito na perspectiva de assegurar o direito dos beneficiários à saúde. Integralidade e prudência andam, pois, juntas. Note-se que, nesse sentido, integralidade é uma característica da boa prática da biomedicina, ou seja, da medicina que tem como objeto privilegiado de conhecimento e como eixo de suas intervenções a doença. Defender a integralidade aqui não implica deixar de lado todo o caudal de conhecimentos sobre as doenças que tem permitido tanto à medicina como à saúde pública alguns significativos sucessos. O que significa, isso sim, é um uso prudente desse conhecimento sobre a doença, mas sobretudo um uso guiado por uma visão abrangente das necessidades dos sujeitos de que tratamos. A atitude de um médico que, diante de um paciente, busca prudentemente reconhecer, para além das demandas explícitas relacionadas a uma experiência de sofrimento, as necessidades de ações de saúde como as relacionadas ao diagnóstico precoce ou à redução de fatores de risco, ilustra um sentido da integralidade profundamente ligado aos ideais da medicina integral. Sentido que pode ser facilmente estendido para além das técnicas de prevenção. A abertura dos médicos para outras necessidades que não as diretamente ligadas à doença presente ou que pode vir a se apresentar – como a simples necessidade da conversa – também ilustra a integralidade.
Podemos facilmente reconhecer que as necessidades dos que buscam serviços de saúde não se reduzem à perspectiva de abolir o sofrimento gerado por uma doença, ou à perspectiva de evitar tal sofrimento. Buscar compreender o conjunto de necessidades de ações e serviços de saúde que um paciente apresenta seria, assim, a marca maior desse sentido de integralidade.
Contudo, na forma como concebidos originalmente pela medicina preventiva, esses sentidos específicos incidem sobre o exercício da medicina, ou melhor, sobre o encontro do médico com seu paciente. Mas deriva daí um limite para a medicina integral, que de fato, analogamente à psicologia médica,dá ênfase à prática médica e ao encontro com o paciente, deixando de abordar com a mesma intensidade o concurso de outros profissionais e de outras formas de encontro com os usuários do serviço de saúde. Com efeito, a mesma preocupação prudente com o uso das técnicas de prevenção e com a identificação mais abrangente das necessidades dos cidadãos no que diz respeito à sua saúde deve ser defendida para o conjunto de profissionais dos serviços de saúde. E o encontro entre médico e paciente é tão-somente um dos lugares nos quais tal preocupação pode se realizar.
Quando um agente comunitário que segue rumo a suas visitas domiciliares se defronta com o convite de um morador para uma prosa sobre um problema que o aflige, ele pode aplicar não a medicina integral, mas a integralidade. Quando esse mesmo agente, no cumprimento de suas funções de pesar as crianças com menos de 24 meses, busca ativamente nas crianças maiores da casa (que não podem ser pesadas com a balança portátil que leva) os indícios de carência nutricional, também põe a integralidade em prática. Ou quando um funcionário de um pronto-socorro se preocupa em informar a um acompanhante que ficou fora da sala de atendimento a evolução de um paciente...
A integralidade, mesmo quando diretamente ligada à aplicação do conhecimento biomédico, não é atributo exclusivo nem predominante dos médicos, mas de todos os profissionais de saúde.
Seria integralidade uma atitude de certos profissionais, ou uma marca das práticas desses profissionais? A noção de atitude pode trazer consigo, por um lado, uma idéia individualista, pois as atitudes seriam atributos de indivíduos. O desenvolvimento de atitudes se faria através de processos que também incidem sobre indivíduos. Mas nesse modo de pensar sobra pouco espaço para a organização do trabalho de uma equipe, de modo a garantir a integralidade, como os dois últimos exemplos sugerem. Com efeito, se é verdade que a postura dos profissionais é fundamental para a integralidade, em muitas situações a integralidade só se realizará com incorporações ou redefinições mais radicais da equipe de saúde e de seus processos de trabalho.
Assim, retomando um exemplo citado há pouco, a equipe de um pronto socorro pode se organizar de modo a ter alguém pronto a oferecer uma informação para os acompanhantes que trouxeram pacientes para o atendimento. Do mesmo modo, a equipe de uma enfermaria de crianças, compreendendo que as crianças têm a necessidade de brincar, pode organizar seu processo de trabalho de modo que as atividades recreativas tenham grande espaço, fazendo com que a enfermaria se assemelhe a uma creche com cuidados diferenciados. Há nisso também algo da visão mais abrangente da percepção das necessidades que configuram a integralidade.
Nesse sentido, talvez fosse mais útil falar da integralidade como uma dimensão das práticas.
Quando a configuração dessas práticas assume a forma de um encontro entre o profissional (médico, enfermeiro, psicólogo ou agente de saúde) com um usuário, caberá quase que exclusivamente a esse profissional (e, portanto, a suas posturas) a realização da integralidade. Mas, mesmo nesses casos limites, há que se reconhecer que a maneira como as práticas estão socialmente configuradas pode propiciar ou dificultar a realização da integralidade.
Por exemplo, as cobranças de produtividade podem, tanto no caso de consultas médicas ou no caso das visitas domiciliares de um agente comunitário (para citar dois exemplos entre tantos possíveis), impedir que se preste um atendimento integral. Discutimos até agora um conjunto de sentidos da integralidade que incidem sobre as práticas dos profissionais de saúde. Eles têm em comum a preocupação de discernir de modo abrangente as necessidades dos usuários desses serviços, buscando, de um lado, gerar e aproveitar as oportunidades de aplicação das técnicas de prevenção e, de outro, levar em conta as necessidades que não se reduzem à prevenção e ao controle das doenças.
Diga-se de passagem, a integralidade assim concebida é um valor que merece ser defendido em relação a todas as práticas de saúde, e não apenas em relação às práticas de saúde do SUS. Mas ao discutir tais sentidos ligados às práticas dos profissionais, convergimos para um outro conjunto de sentidos da integralidade, ligados à organização do trabalho nos serviços de saúde.
fonte Da medicina integral à prática da integralidade: integralidade como um traço da boa medicina
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