Um outro conjunto de sentidos do princípio de integralidade é relativo às configurações de certas políticas específicas, chamadas aqui de políticas especiais.
São políticas especificamente desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde, ou aos problemas de saúde que afligem um certo grupo populacional. Poderíamos falar que esse terceiro conjunto de sentidos da integralidade trata de atributos das respostas governamentais a certos problemas de saúde, ou às necessidades de certos grupos específicos.
Preferimos aqui o termo política ao termo programa, para ressaltar a dimensão mais abrangente da resposta governamental a certos problemas públicos. É fato que muitas das respostas governamentais a certos problemas de saúde assumiram (e assumem) formas denominadas programas, e os tradicionais programas verticais exemplificam isso.
Contudo, neste trabalho reservamos o termo programa a um conjunto de ações organizadas com vistas ao enfrentamento de um problema público qualquer, tendo geralmente expressão institucional (e portanto orçamentária) e uma perspectiva de atuação não limitada temporalmente. Talvez devamos ao movimento feminista no Brasil a construção desse tipo de uso da noção de integralidade. Sabemos que o movimento feminista influenciou muito a elaboração do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, no âmbito do Ministério da Saúde. Subjacente a esse programa estava uma densa crítica ao modo como as questões e os problemas de saúde da mulher vinham sendo tratados nas políticas e nos serviços de saúde. Talvez o aspecto mais central dessa crítica pudesse ser resumido da seguinte forma: os problemas de saúde da mulher eram pensados de forma reducionista, sem levar em conta os contextos culturais e as diversas formas de dominação que conferiam especificidades ao adoecimento das mulheres.
Em conseqüência, as respostas governamentais não respondiam adequadamente, quer a essas especificidades do adoecimento da mulher brasileira, nem tampouco se inscreviam numa perspectiva de emancipação, ou seja, da superação das diversas dominações. Dessa crítica nasce um ideal de construir políticas voltadas para a assistência à mulher. Sem dúvida, as mulheres já eram consideradas parte de uma população-alvo prioritária: a população materno-infantil. Mas há uma ruptura radical entre essa noção de grupo materno-infantil e a de mulher que integrará a população-alvo do PAISM.
Tal ruptura pode ser apreendida a partir de uma distinção bastante óbvia: a mulher integrava o grupo materno-infantil mediada por sua função reprodutora.
O movimento feminista travou uma grande luta contra o reducionismo implícito nessa acepção. Não era aceitável que a saúde da mulher fosse vista apenas em função da perspectiva de ela se tornar mãe. A saúde da mulher deveria ser pensada desde a perspectiva de sua vida, que deveria ter na maternidade uma de suas muitas opções. Compreende-se assim a importância que temas como o planejamento familiar adquirirão no PAISM.
O termo assistência integral procurava indicar essa ampliação do horizonte na qual os problemas de saúde da mulher deveriam ser pensados. Integralidade aqui quer dizer uma recusa, por parte dos que se engajam na formulação de uma política, em reduzir o objeto de suas políticas, ou melhor, de reduzir a objetos descontextualizados os sujeitos sobre os quais as políticas incidem. São inegáveis os avanços na integralidade da assistência produzidos pelo PAISM. Mas também são inegáveis seus limites, postos em grande parte pela forma que a política assumiu, a de um programa. Como os programas têm repercussões institucionais e, portanto, âmbitos delimitados no confronto com outros programas, a perspectiva de integralidade proposta pelo movimento feminista teve que ser delimitada. Isso implicou que alguns dos ideais da assistência integral à saúde da mulher fossem abdicados (pelo menos temporariamente).
Assim, o programa se ocupou dos problemas de saúde da mulher diretamente relacionados com o útero (gravídico ou não) e com as mamas, assim como ao planejamento familiar.
As eventuais especificidades do adoecimento feminino, produzidas não pelas especificidades biológicas, mas pelas culturalmente ligadas ao gênero, não puderam ser abordadas adequadamente (o que segue sendo um grande desafio para a construção de uma assistência integral). Tal delimitação, embora compreensível no bojo das lutas entre os diversos programas verticalmente construídos (que ainda prevaleciam à época), não era nem é aceitável. Nesse sentido, deveríamos talvez seguir aprendendo algo com o movimento feminista, e seguir lutando pelo seu ideal de uma assistência integral à saúde da mulher.
Até aqui destacamos um sentido de integralidade aplicável a certas propostas de respostas governamentais aos problemas de saúde, que se configura fundamentalmente pela recusa em objetivar e recortar os sujeitos sobre os quais a política de saúde incide, e que, portanto, amplia o horizonte de problemas a serem tratados pela política.
Mas há um outro sentido de integralidade também aplicável às respostas governamentais na área de saúde. Ele também diz respeito ao elenco de ações contempladas numa política especial, mas enfatiza um aspecto: em que medida a resposta governamental incorpora ações voltadas à prevenção e ações voltadas à assistência.
Nesse sentido, a noção de integralidade expressa a convicção de que cabe ao governo responder a certos problemas de saúde pública, e que essa resposta deve incorporar tanto as possibilidades de prevenção como as assistenciais.
Nesse sentido, poderíamos criticar um programa de prevenção do câncer de mama, que deixe de levar em conta as necessidades de restauração de mamas das mulheres que realizam mastectomias em função da doença.
Uma resposta coerente com o princípio da integralidade da assistência, nesse sentido, deveria viabilizar o acesso às técnicas de diagnóstico precoce, assegurando a todas as mulheres que fazem o diagnóstico (mesmo as que o fazem tardiamente) o acesso às formas de tratamento de que necessitam. Aliás, como a prevenção do câncer de mama se faz através de diagnóstico precoce, a oferta desse diagnóstico desacompanhada do pronto acesso de todas ao tratamento adequado é não só uma transgressão ao princípio da integralidade, como é algo totalmente inaceitável do ponto de vista ético. No Brasil talvez seja a resposta governamental à Aids a que mais se aproxima do princípio da integralidade nesse último sentido (o de abarcar tanto a perspectiva preventiva quanto a assistencial).
A resposta governamental brasileira destoou de uma série de recomendações emanadas de agências internacionais, como o Banco Mundial, sobre as políticas frente à Aids.
Em geral, tais recomendações defendiam que os governos deveriam se empenhar na oferta das intervenções preventivas, consideradas altamente eficazes em termo de custo, deixando de financiar ou prover algumas intervenções, como o uso de anti-retrovirais.
A resposta brasileira, entretanto, norteou-se pelo princípio da integralidade, de modo que o governo assumiu a responsabilidade de distribuir gratuitamente os anti-retrovirais aos pacientes com a doença, sem descuidar das práticas preventivas.
Esse aspecto merece um comentário adicional. Com efeito, têm-se difundido no debate sobre as políticas de saúde as teses que advogam o uso de critérios de eficiência, como a chamada eficácia em termos de custo. Podemos, entretanto, vislumbrar pelo menos dois modos de uso desse critério de eficiência no que diz respeito à escolha do elenco de atividades contempladas por uma certa política especial. O primeiro, ilustrado pelo documento Investindo em saúde, elaborado pelo Banco Mundial em 1993, analisa a eficácia de intervenções isoladas. A idéia presente naquele documento era a de utilizar esses indicadores de intervenções isoladas para constituir um pacote de intervenções a ser financiado pelos governos. É desta forma que se torna possível, por exemplo, recomendar aos governos que distribuam camisinhas e que não distribuam anti-retrovirais. O segundo modo de uso dos critérios de eficiência já era ilustrado pelo velho método CENDES/OPAS, publicado em 1965. A diferença é que as unidades de análise não eram intervenções isoladas, mas conjuntos de intervenções combinadas de forma a responder a um certo problema de saúde.
Apenas esse segundo modo de uso é compatível com o princípio da integralidade, pois exige que as diferentes combinações de atividades preventivas e assistenciais sejam apreciadas em seu conjunto. A resposta governamental brasileira à Aids sempre se pautou pelo respeito aos direitos dos que vivem com essa doença. Concebendo a Aids como um mosaico de epidemias, envolvendo diversos modos de transmissão, a resposta brasileira abarcou um elenco abrangente de estratégias e intervenções. Há aqui outra nuança do sentido de integralidade aplicado ao desenho das políticas: a capacidade de abarcar os diversos grupos atingidos pelo problema, respeitando suas especificidades.
Mas, para fazê-lo inteiramente, pode ser necessário transgredir os espaços das políticas setoriais. Como responder adequadamente à Aids nos presídios, por exemplo, sem uma perspectiva de integralidade que vá muito além dos recortes da saúde?
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