6 de out. de 2017

Estruturante na Luta pela Integralidade

Universalidade, integralidade e eqüidade da atenção constituem um conceito tríplice, entrelaçado, quase um signo, com forte poder de expressar ou traduzir de forma muito viva o ideário da Reforma Sanitária brasileira. A cidadania, a saúde como direito de todos e a superação das injustiças resultantes da nossa estrutura social estão implícitas no tríplice conceito-signo. 
Neste texto, destaco e trabalho mais especificamente os temas da integralidade e da eqüidade, sem desconsiderar que não há integralidade e eqüidade possíveis sem a universalidade do acesso garantida. Dou ênfase a esses dois conceitos porque creio que a integralidade e a eqüidade, enquanto objetivos da atenção em saúde, vão além do simples “consumo” ou acesso a determinados serviços e nos remetem ao campo da(s) micropolítica(s) de saúde e suas articulações, fluxos e circuitos. 
Estes, afinal, configuram uma “macro” política de saúde que, por convenção (e inércia) temos chamado de “sistema de saúde”. 
E ainda, acho que pensar a eqüidade e a integralidade da atenção nos obriga a enxergar como o “micro” está no “macro” e o “macro” no “micro”, e que essa recursividade, mais do que uma formulação teórica, tem importantes implicações na organização de nossas práticas. 
A luta pela eqüidade e pela integralidade implica, necessariamente, repensarmos aspectos importantes da organização do processo de trabalho, gestão, planejamento e construção de novos saberes e práticas em saúde. Para orientar estas reflexões, vou tomar como “analisador” as necessidades de saúde, em particular a potencialidade que têm de ajudar os trabalhadores/equipes/serviços/rede de serviços a fazer uma melhor escuta das pessoas que buscam “cuidados em saúde”, tomando suas necessidades como centro de suas intervenções e práticas. 
O desafio, então, seria conseguirmos fazer uma conceituação de necessidades de saúde que pudesse ser apropriada e implementada pelos trabalhadores de saúde nos seus cotidianos. 
Algo que nos permitisse fazer uma mediação entre a incontornável complexidade do conceito (necessidades de saúde) e sua compreensão e apropriação pelos trabalhadores, visando a uma atenção mais humanizada e qualificada. As conclusões e indicações de Stotz (1991) têm desempenhado papel muito importante na discussão que aqui apresento, e em várias investigações acadêmicas e intervenções institucionais que tenho acompanhado.
 Entre tantas contribuições do autor, destaco duas. 
A primeira é aquela que reconhece que, se as necessidades de saúde são social e historicamente determinadas/ construídas, elas só podem ser captadas e trabalhadas em sua dimensão individual.
 A outra indicação de Stotz que tenho adotado e desenvolvido é que seria quase inevitável a adoção de alguma taxonomia de necessidades de saúde, “ou seja, de que se deva utilizar um conceito normativo (de necessidade de saúde) que seja traduzível em descritivo e operacional [...]. 
Por outro lado, o conceito descritivo e operacional precisa ser reconceitualizado para poder exprimir a dialética do individual e do social” (STOTZ, 1991, p. 136). A taxonomia que tenho adotado (CECILIO, 1999; MATSUMOTO, 1999) trabalha com a idéia de que as necessidades de saúde poderiam ser apreendidas, de forma bastante completa, numa taxonomia organizada em quatro grandes conjuntos. O primeiro diz respeito a se ter “boas condições de vida”. 
A reconceitualização necessária aqui, tal como apontado por Stoz, seria no sentido de reconhecer que “boas condições de vida” poderiam ser entendidas tanto no sentido mais funcionalista, que enfatiza os fatores do “ambiente”, “externos”, que determinam o processo saúde-doença (Leavell e Clark são paradigmáticos com sua História natural da doença), como nas formulações de autores de extração marxista (Berlinguer, Castellanos, Laurell e Breilh, por exemplo), que enfatizam os diferentes lugares ocupados por homens e mulheres no processo produtivo nas sociedades capitalistas como as explicações mais importantes para os modos de adoecer e morrer (inserção na fábrica, no escritório, mas também acesso a água tratada, condições de moradia e hábitos pessoais).
 Ecletismo nos pontos de partida conceituais, mas um consenso: a maneira como se vive se “traduz” em diferentes necessidades de saúde. 
O outro conjunto de necessidades de saúde que constitui a taxonomia fala da necessidade de se ter acesso e se poder consumir toda tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida. 
A reconceitualização necessária aqui é, partindo-se dos conceitos de tecnologias leve, leve-dura e dura (MERHY, 1997), abandonar qualquer pretensão de hierarquizar essas tecnologias.
 Questiona-se, assim, a idéia prevalente de que as tecnologias duras, baseadas na produção de procedimentos dependentes de equipamentos, seriam mais “complexas”, e aquelas mais relacionais, do tipo leve, seriam menos “complexas”. Trabalho com a idéia de que o valor de uso (CAMPOS, 1992) que assume cada tecnologia de saúde é sempre definido a partir da necessidade de cada pessoa, em cada singular momento que vive. O diagnóstico precoce de uma hipertensão arterial, para determinada pessoa, em determinado momento de sua vida, é tão crucial quanto o acesso a um exame de cineangiocoronariografia para outro, que vive outro momento. 
A “hierarquia” de importância do consumo das tecnologias, não a estabelecemos unicamente nós, técnicos, mas também as pessoas, com suas necessidades reais. 
Um terceiro conjunto de necessidades diz respeito à insubstituível criação de vínculos (a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou um profissional – vínculo enquanto referência e relação de confiança, algo como o rosto do sistema de saúde para o usuário. 
A reconceitualização aqui é reconhecer que o vínculo, mais do que a simples adscrição a um serviço ou a inscrição formal a um programa, significa o estabelecimento de uma relação contínua no tempo, pessoal e intransferível, calorosa: encontro de subjetividades. 
Um quarto e último conjunto de necessidades diz respeito à necessidade de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia no seu modo de levar a vida. A reconceitualização dessa necessidade é que informação e educação em saúde são apenas parte do processo de construção da autonomia de cada pessoa. A autonomia implicaria a possibilidade de reconstrução, pelos sujeitos, dos sentidos de sua vida e essa ressignificação teria peso efetivo no seu modo de viver, incluindo aí a luta pela satisfação de suas necessidades, da forma mais ampla possível.

As Necessidades de Saúde como Conceito Estruturante na Luta pela Integralidade e Eqüidade na Atenção em Saúde
LUIZ CARLOS DE OLIVEIRA CECILIO
 

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