Uma definição ampliada de integralidade da atenção a partir das necessidades de saúde
É possível adotar a idéia de que a integralidade da atenção precisa ser trabalhada em várias dimensões para que seja alcançada da forma mais completa possível.
Numa primeira dimensão, a integralidade deve ser fruto do esforço e confluência dos vários saberes de uma equipe multiprofissional, no espaço concreto e singular dos serviços de saúde, sejam eles um centro de saúde, uma equipe de Programa de Saúde da Família (PSF) ou um hospital.
Poderíamos denominá-la “integralidade focalizada”, na medida em que seria trabalhada no espaço bem delimitado (focalizado) de um serviço de saúde. Nesse encontro do usuário com a equipe haveriam de prevalecer, sempre, o compromisso e a preocupação de se fazer a melhor escuta possível das necessidades de saúde trazidas por aquela pessoa que busca o serviço, apresentadas ou “travestidas” em alguma(s) demanda(s) específica(s). Poderíamos trabalhar com a seguinte imagem: quando alguém procura um serviço de saúde, está trazendo uma “cesta de necessidades de saúde” e caberia à equipe ter sensibilidade e preparo para decodificar e saber atender da melhor forma possível.
Toda a ênfase da gestão, organização da atenção e capacitação dos trabalhadores deveria ser no sentido de uma maior capacidade de escutar e atender às necessidades de saúde, mais do que a adesão pura e simples a qualquer modelo de atenção dado aprioristicamente. A demanda é o pedido explícito, a “tradução” de necessidades mais complexas do usuário. Na verdade, demanda, em boa medida, são as necessidades modeladas pela oferta que os serviços fazem. A demanda pode ser por consulta médica, consumo de medicamentos, realização de exames (as ofertas mais tradicionalmente percebidas pelos usuários...); as necessidades podem ser bem outras. As necessidades de saúde, como vimos, podem ser a busca de algum tipo de resposta para as más condições de vida que a pessoa viveu ou está vivendo (do desemprego à violência no lar), a procura de um vínculo (a)efetivo com algum profissional, a necessidade de ter maior autonomia no modo de andar a vida ou, mesmo, de ter acesso a alguma tecnologia de saúde disponível, capaz de melhorar e prolongar sua vida.
Está tudo ali, na “cestinha de necessidades”, precisando ser, de alguma forma, escutado e traduzido, pela equipe. Assim, a integralidade da atenção, no espaço singular de cada serviço de saúde, poderia ser definida como o esforço da equipe de saúde de traduzir e atender, da melhor forma possível, tais necessidades, sempre complexas mas, principalmente, tendo que ser captadas em sua expressão individual.
O resultado dessa “integralidade focalizada” há de ser o resultado do esforço de cada um dos trabalhadores e da equipe como um todo. Cada atendimento, de cada profissional, deve estar compromissado com a maior integralidade possível, sempre, mas também ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida só será alcançada como fruto do trabalho solidário da equipe de saúde, com seus múltiplos saberes e práticas.
Maior integralidade possível na abordagem de cada profissional, maior integralidade possível como fruto de um trabalho multiprofissional. Duplo desafio que há de ser tratado no processo de gestão dos serviços, em particular nos processos de conversação e comunicação – entendimento para ação – que se estabelecem entre os diferentes trabalhadores de saúde. A (máxima) integralidade (possível) da atenção, pautada pelo (melhor) atendimento (possível) às necessidades de saúde portadas pelas pessoas: uma síntese das pretensões da integralidade no espaço da micropolítica de saúde.
Por outro lado, é necessário ter em conta que a integralidade nunca será plena em qualquer serviço de saúde singular, por melhor que seja a equipe, por melhores que sejam os trabalhadores, por melhor que seja a comunicação entre eles e a coordenação de suas práticas. Em particular, a batalha pela melhoria das condições de vida e pelo acesso a todas as tecnologias para melhorar e prolongar a vida, por mais competente e comprometida que seja a equipe, jamais poderá ser plenamente bem-sucedida no espaço singular dos serviços. Tal constatação nos remete, então, a uma segunda dimensão da integralidade da atenção, qual seja, a integralidade da atenção como fruto de uma articulação de cada serviço de saúde, seja ele um centro de saúde, uma equipe de PSF, um ambulatório de especialidades ou um hospital, a uma rede muito mais complexa composta por outros serviços de saúde e outras instituições não necessariamente do “setor” saúde. A integralidade pensada no “macro”.
A (máxima) integralidade da atenção no espaço singular do serviço – integralidade focalizada – pensada como parte de uma integralidade mais ampliada que se realiza numa rede de serviços de saúde ou não. A integralidade da atenção pensada em rede, como objeto de reflexão e de (novas) práticas da equipe de saúde e sua gerência, em particular a compreensão de que ela não se dá, nunca, num lugar só, seja porque as várias tecnologias em saúde para melhorar e prolongar a vida estão distribuídas numa ampla gama de serviços, seja porque a melhoria das condições de vida é tarefa para um esforço intersetorial. Dependendo do momento que vive o usuário, a tecnologia de saúde de que necessita pode estar em uma unidade básica de saúde ou em algum serviço produtor de procedimentos sofisticados.
Pode haver um momento em que a garantia do consumo de determinadas tecnologias mais “duras” (MERHY, 1997), mais baseadas em procedimentos e consideradas mais “complexas”, produzidas em lugares específicos, que funcionam como referência para determinado número de serviços, seja essencial para se garantir a integralidade da atenção.
Sem esse acesso, não haveria integralidade possível: finalização do cuidado, resolutividade máxima, dentro dos conhecimentos atuais disponíveis, para o problema de saúde que a pessoa está vivendo. A garantia dessa integralidade do cuidado tem que ser uma responsabilidade do sistema de saúde e não fruto da batalha individual, muitas vezes desesperada, de cada usuário individual. Em outro momento, a simples participação num grupo de hipertensos ou de diabéticos pode ser a tecnologia que melhor responde a determinadas necessidades, tendo alto grau de impacto na qualidade de vida daquelas pessoas.
São necessários novos fluxos e novas possibilidades de captação de clientes na várias portas de entrada do “sistema” de saúde e, mais do que isso, uma reconceitualização do que seja “serviço de referência” (CECILIO, 1997). Assim, muitas vezes, a “referência” de que o paciente necessita é um atendimento ambulatorial regular e vinculante, que dê conta de suas necessidades atuais. Por isso é necessário pensar o “sistema” de saúde menos como “pirâmide” de serviços racionalmente organizados de forma hierarquizada e mais como uma rede com múltiplas entradas, múltiplos fluxos, para cuja construção as representações e necessidades individuais são muito importantes.
Por outra parte, é necessário considerar, ainda, que essa imagem de um sistema de saúde organizado como uma pirâmide, por níveis de “complexidade crescente”, “hierarquizado”, dá conta, apenas em parte, da discussão sobre integralidade que se está fazendo aqui, porque os serviços mais “complexos”, de referência, têm sido entendidos como lugares de finalização, da última palavra, de atendimento de demandas pontuais, superespecializadas e específicas e, por isso mesmo, descompromissados com a integralidade.
No máximo, a integralidade entendida como uma boa contra-referência para o serviço que encaminhou. O que não é pouco, no contexto atual, mas não basta.
Defendo que a lógica da integralidade, tal como desenvolvida no que chamei de primeira dimensão da integralidade, a “integralidade focalizada”, como preocupação de cada profissional e da equipe de cada serviço, deve estar presente em todos os serviços, mesmo nos superespecializados, seja ele um serviço de emergência ou uma enfermaria de hospital, por exemplo. Precisamos deslocar nosso foco de atenção da “atenção primária” como lugar privilegiado da integralidade.
Aliás, integralidade não se realiza nunca em um serviço: integralidade é objetivo de rede. Temos desconsiderado que há espaço para (e necessidade de) escuta das necessidades singulares de saúde das pessoas e a criação de novas estratégias de qualificação e defesa da vida dos usuários, mesmo naqueles serviços pelos quais estão apenas de “passagem”, para consumo de um atendimento bem especializado. Poder-se-ia argumentar que é exigir demais que os serviços superespecializados se dediquem a fazer uma escuta mais cuidadosa, bastando a eles cumprir sua parte de oferecer o atendimento especializado necessário naquele momento. A integralidade, por esta visão, seria conseguida por uma boa articulação entre os serviços, cada um “cumprindo sua parte”.
Pode ser. Ou, pelo menos, os paradigmas de atenção que temos trabalhado, entre outras coisas, pela formação que a academia continua produzindo, não nos permitem pensar de outra forma. Mas creio que temos que nos ocupar de pensar novas maneiras de realizar o trabalho em saúde. Por exemplo, um episódio de internação hospitalar pode ser uma situação privilegiada para se estabelecer vínculos, mesmo que temporários, e se trabalhar a construção da autonomia do “paciente”.
O atendimento num serviço de emergência pode ser um momento crucial para a escuta da necessidade de consumo de certas tecnologias para melhorar e prolongar a vida e que estão disponíveis em outros serviços e não naquele pronto-socorro. Um paciente hipertenso, que esteja sem seguimento contínuo ou vínculo com um serviço ambulatorial, não pode deixar o pronto-socorro sem essa orientação e, de preferência, sem sair com uma consulta marcada. Uma consulta médica, por mais especializada que seja, não pode deixar de fazer uma certa escuta de outras necessidades do paciente que vão além da demanda “referenciada” que o traz ao consultório. A intervenção do especialista não pode alcançar sua eficácia plena se não tiver uma boa noção do modo de andar a vida do paciente, inclusive seu vínculo com outra equipe ou profissional, seu grau de autonomia e a interpretação que faz de sua doença. Simples como idéia, muito difícil de implementar na prática. Seguimos trabalhando de forma muito fragmentada, respondendo a demandas pontuais com o que temos em mãos, ou seja, não temos nos ocupado com a questão da integralidade de forma mais “completa”, pelo menos do ponto de vista da pessoa concreta que, naquele momento, busca alguma forma de assistência.
Chamemos, pois, de “integralidade ampliada” esta articulação em rede, institucional, intencional, processual, das múltiplas “integralidades focalizadas” que, tendo como epicentro cada serviço de saúde, se articulam em fluxos e circuitos, a partir das necessidades reais das pessoas – a integralidade no “micro” refletida no “macro”; pensar a organização do “macro” que resulte em maior possibilidade de integralidade no “micro”. Radicalizar a idéia de que cada pessoa, com suas múltiplas e singulares necessidades, seja sempre o foco, o objeto, a razão de ser de cada serviço de saúde e do “sistema” de saúde.
A integralidade ampliada seria esta relação articulada, complementar e dialética, entre a máxima integralidade no cuidado de cada profissional, de cada equipe e da rede de serviços de saúde e outros.
Uma não é possível sem a outra. O cuidado individual, em qualquer serviço de saúde, não importa sua “complexidade”, está sempre atento à possibilidade e à potencialidade de agregação de outros saberes disponíveis na equipe e de outros saberes e práticas disponíveis em outros serviços, de saúde ou não.
As Necessidades de Saúde como Conceito Estruturante na Luta pela Integralidade e Eqüidade na Atenção em Saúde
LUIZ CARLOS DE OLIVEIRA CECILIO
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