20 de mai. de 2011

A historia desarquivada

A história desarquivada
Fitas contendo gravações com as defesas de Sobral Pinto no Superior Tribunal Militar, em 1975, trazem à luz registros guardados nas gavetas de uma Justiça ligada aos regimes fechados
Há um tesouro dormindo ao lado da sala de gravações do Superior Tribunal Militar (STM).

Está guardado em dois arquivos pintados de cinza, cada um com quatro gavetas. Nelas, fitas magnéticas daquelas usadas em velhos gravadores de rolo contendo sustentações orais feitas por advogados que defenderam presos políticos depois de 1964.

Poucos sabem da existência das fitas. Os processos tramitaram durante o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar (1964-1985) e estão arquivados no subsolo do tribunal, em Brasília. Os interessados podem consultá-los com facilidade. As gravações, não. O estudante de Direito da Faculdade Santa Úrsula Fernando Augusto Fernandes, de 25 anos, foi quem resgatou as preciosidades gravadas. Entre as gravações esquecidas nos arquivos cinza do STM estão defesas feitas pelo advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto, símbolo da luta pelos direitos humanos. São a jóia maior do tesouro. Sobral Pinto morreu em 1991, aos 98 anos de idade. Época ouviu as fitas, fragmentos de um compêndio oral que retrata, com emoção, parte da da história do Direito e da luta nos tribunais pela liberdade no Brasil.

Numa delas, Sobral Pinto defende o líder sindical Oswaldo Pacheco da Silva, estivador do Porto de Santos e deputado na Constituinte de 1946. Pacheco foi preso no DOI-Codi de São Paulo em 1975. O timbre manso mas firme da voz de Sobral Pinto impressiona nas defesas. Dono de uma vigorosa oratória, sabia ser forte quando outros defensores dos direitos humanos só sussurravam.
Oswaldo Pacheco Sergipano, foi um dos maiores líderes sindicais dos portuários brasileiros que se projetou no Porto de Santos (SP). Era sergipano e elegeu-se deputado constituinte por São Paulo em 1946. Morreu em 1993 O que sofreu: Acusado de comunista, foi cassado depois de promulgada a Constituição de 1946. Exilou-se no México em 1964 Na ditadura militar: Foi preso e torturado sob o regime dos generais

Defendendo Oswaldo Pacheco, Sobral Pinto jurou ao tribunal que empregaria todos os meios para evitar uma dupla condenação do sindicalista em razão das mesmas acusações. O réu acumulava processos na Justiça Militar. "Aquilo que se chama de prova é apenas a sua confissão feita em juízo, através de torturas cruéis, das quais eu sou testemunha porque estive com esse homem quase um ano depois das torturas que ele sofreu para fazer esta confissão. Ele era um molambo de homem", denunciou. O advogado esgrimia com um discurso corajoso, diante de militares, num momento em que o regime não garantia os direitos individuais.

"A grande mensagem que ele deu foi a obsessão no exercício do direito de defesa num momento de autoritarismo", diz Nelson Jobim, ministro do Supremo Tribunal Federal. Sobral Pinto era quase um sinônimo da atividade de advogado de presos políticos. Católico praticante, passou quase toda a vida defendendo comunistas ateus. Evandro Lins e Silva, advogado, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, apelidou-o de Advogado Universal.

Com a defesa do comunista Harry Berger no extinto Tribunal de Segurança Nacional (TSN), do Estado Novo de Getúlio Vargas, o nome de Sobral Pinto ganhou repercussão internacional. O TSN julgava envolvidos na Intentona Comunista de 1935, tentativa frustrada de golpe do PCB. A Internacional Comunista fez de Berger o orientador dos comunistas brasileiros. Ele era um refugiado alemão na União Soviética. Berger acabou preso, passou privações na cadeia e foi submetido a torturas. É celebre a argumentação de Sobral Pinto nesse episódio. Comparou o tratamento dispensado ao alemão com aquele dado aos animais. Segundo o advogado, a forma como o Estado cuidava de um preso político infringia até dispositivos da legislação de proteção aos animais. Sobral Pinto foi derrotado e Berger amargou uma pena de 16 anos. Depois, anistiado, voltou em 1945, louco, para a Alemanha.

A fama de defensor dos comunistas se consolidou ao ser escolhido pela OAB para defender Luís Carlos Prestes à revelia do próprio preso. Alegava que Sobral Pinto tinha "mentalidade burguesa". Incansável, o advogado recorreu à mãe de Prestes, dona Leocádia. Conseguiu o que queria. "Prestes tentou me converter ao comunismo, eu tentei convertê-lo ao catolicismo, e nenhum dos dois conseguiu", disse, anos depois. Para manter as famílias dos réus informadas sobre o que acontecia, Sobral Pinto escrevia cartas. Era dessa forma que também se comunicava com autoridades. Qualquer descontentamento era registrado por ele. As cartas se tornaram famosas. Agora, juntam-se a esse acervo as sustentações orais que fazia.

Evandro Lins e Silva chegou a atuar junto com Sobral Pinto no Tribunal de Segurança Nacional, no Estado Novo de Getúlio. Era seu aprendiz. "Foi um advogado extraordinário", diz o amigo. Os elogios surgem aos borbotões. "Era competente, correto e tinha princípios rígidos."

Em 1955, engajou-se na campanha de defesa da posse de Juscelino Kubitschek. Insurgiu-se contra a linha dura do governo do marechal Humberto de Alencar Castello Branco em 1964. Foi crítico severo do Pacote de Abril, decretado pelo penúltimo general-presidente, Ernesto Geisel, em 1977. Defendeu a promulgação da anistia. Participou do movimento das Diretas Já em 1984 e ficou ainda mais célebre ao citar a Constituição no histórico comício da Candelária, no Rio. Chegou a ser enredo de escola de samba carioca, cantado pelo compositor João Nogueira. "Sempre foi um lutador pela democracia", diz o jurista Goffredo da Silva Telles Jr. Só não sabia cobrar honorários por seus serviços. Em razão disso, fazia piada consigo mesmo dizendo ter feito voto de pobreza na banca de advocacia.


Em março de 1980, um desses grupos da direita terrorista pôs uma bomba na ante-sala do escritório do advogado. Nada aconteceu, mas o episódio mereceu moção de protesto aprovada por unanimidade pelo STM. A iniciativa partiu do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, ministro do tribunal. "Sempre considerei o preso intocável", diz Bierrenbach. "Eu e o doutor Sobral Pinto tínhamos em comum a aversão à tortura." Dois anos antes, o almirante havia declarado que não condenava réus torturados e denunciara torturas no Dops do Rio. Recebeu uma carta elogiosa de Sobral Pinto.

O chapéu preto, o guarda-chuva e os óculos redondos de Sobral Pinto são usados como símbolos no livro que o estudante Fernando Augusto Fernandes escreve sobre os regimes de exceção na História. As brilhantes defesas de presos políticos feitas por Sobral Pinto são a base da obra. Vivo, o advogado que defendia comunistas e rezava compenetrado nas missas dominicais recebeu medalhas e títulos. Morto, foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito. "Ele era um símbolo", diz o criminalista Waldir Troncoso Peres. "Tinha um magnetismo pessoal muito grande. Entrava numa sala e era como se preenchesse todo o ambiente." Agora, a divulgação das fitas serve de homenagem ao exemplar Doutor Sobral.

Fonte Helô Reiner revista Epoca

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