Perspectivas
Em nome da modernidade e da globalização, fenômeno econômico de ordem internacional,
vivemos a era da busca da qualidade através das consagradas privatizações,que prometem lucros maximizados e maior eficiência das organizações.
Este, a princípio, parece ser também o espírito da Lei 8630, que tanto amedronta e assusta os estivadores do Porto de Santos. É notório,entretanto, que a modernidade traz em seu bojo também o desemprego e
a instabilidade social. Talvez acossados por estes fatos, permanecemos duvidosos sobre os efeitos nefastos desta via, que parece servir apenas aos grandes senhores, os quais decidirão quando e como ofertar um prato de comida em troca do trabalho feito. Como a globalização, que parece entender adequadamente da redução de custos, aumento da produção e do lucro, compreende a relação entre o trabalhador e seu trabalho?
A história aqui rememorada, o contexto social e político aqui resgatados,as falas aqui reproduzidas, nos indicam que o tempo e o espaço criam raízes e ao mesmo tempo as transformam.
O estivador teve sua imagem, por muito tempo, vinculada à de um operário cujo trabalho significava tão
somente exercer força muscular, ganhando altos salários, e com a pecha de pertencer a uma corporação sindical mantida pela corrupção de uma liderança mafiosa.
Mas a história oficial não reproduz a luta heróica de trabalhadores que sofreram a espoliação sistemática de seus empregadores, sob constante repressão policial.
O poder de barganha da categoria permitiu-lhe, no passado, atuar como grupo de pressão na vanguarda do movimento sindical, enquanto sua liderança lhe assegurava o fortalecimento desse mesmo poder.
Em outras palavras, a "corporação" internamente democratizada liderou a luta política no âmbito do
movimento sindical, sendo por ela fortalecida.Entretanto, esta não pode ser vista apenas como uma categoria com acumulados ganhos materiais, enfraquecida que foi pela intransigência de seus oponentes.
O capital, com suas potentes armas, superaram as organizações operárias.
Estas últimas, moldadas num prejudicial autoritarismo, não lograram seguir uma linha de conduta clara,
já ultrapassada e copiada das próprias organizações burguesas que as oprimiram.
Hoje, escorraçados de seus postos de trabalho, pelo próprio processo de privatização que avança cais adentro, os estivadores pedem licença para viver. Neste embate com poderosas forças antagônicas, procuram soluções negociadas que não firam os direitos já adquiridos.Mas torna-se dificil varrer da memória as qualidades de coragem, persistência e solidariedade,tradição esta que perdurou por um século na história social deste país.Aparentemente integrados na ordem social que se faz presente, estes estivadores apresentam suas fonnas de resistência às imposições desta mesma ordem, sentida como ameaça à preservação do grupo social ao qual pertencem.
A insegurança do cotidiano perante a expectativa de perda de trabalho e de segurança financeira, o pânico pennanente ante à lei, atenta e rígida, a itinerância, a oposição ao poder implicam solidariedades temporárias e formas intennitentes de consciência de grupo, sendo a violência a fonna de resistência possível.
O tempo e o espaço constituem a dimensão de suas representações sobre trabalho e existência.
Desafiam o sonho do tempo eterno, ao procurar a permanência de seus desejos e práticas cotidianas.
Mas desafiam o espaço também com suas práticas que, a exemplo das "paredes", rítualizam-se para reafinnar o território conquistado. São verdadeiras fortalezas na luta contra o destino e contra o tempo vivido sem retorno, residindo aí o apego passional do grupo ao território.
Mas não nos esqueçamos que a troca desigual, expressa no cais pela violência sutil de opressores ou ruidosa de oprimidos, é que dá mobilidade ao social. Anuncia o conflito, a luta, a transfonnação.
E é este presente caótico que é vivido hoje, com intensidade, pelos estivadores de Santos,
amedrontados que estão pela precariedade da promessa de uma sociedade tecnológica,produtiva, ideal, asséptica...o estudo antropológico desta categoria, que trouxe ao leitor a possibilidade de lançar um novo olhar à imagem rotulada e pejorativa desta classe de trabalhadores, talvez fragmentado na sua fonna de apresentação, espelha tão somente a nossa vida cotidiana, desordenada, ambígua, incoerente,mas plena de sentido!
Aqui não repousam verdades absolutas a serem comprovadas, mas caminhos alternativos para que possamos compreender os estivadores do Porto de Santos, para que possamos inseri-los no fluxo complexo da vida que deita raízes e depois as transfoma...
"Meu pai trouxe a gente pro cá... eu vim pro cais com 16 anos trabalhar com a carteira do meu irmão.Eu não estudei, né, meus irmãos, nenhum de nós estudou,fizemos só o ginásio, não dava, não dava no cais..então nós puxamos aquilo que o meu pai fazia....Aquilo que eu fiz... fiz no caso até hnje eu fiz com o maior orgulho,com a maior vontade,pra mim o porto de Santos é o maior...maior trabalho do mundo!
Ser estivador é o maior prazer meu... é ser estivador.
Eu adoro,adoro,não só adoro como é a minha vida!
A gente que lutou pra ser o que é... é tudo do cais, tudo do cais, do cais...
o cais é a coisa mais linda que tem....a senhnra me desculpa ficar emocionado....
mas, é tudo do cais... »
Projeto de pesquisa intitulado
"Representações de trabalho:um estudo dos estivadores de Santos",
integrante do PROPOMAR -
Programa Nacional de Pesquisa sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores Portuários e Marítimos.
Projeto realizado pela Fundacentro no período de junho de 1997 a novembro de 1999
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