30 de out. de 2012

Um Estudo dos Estivadores de Santos


As perspectivas dos estivadores em relação ao trabalho e à própria vida são sombrias. Sentem o futuro ameaçador, pouco promissor e apostam na tendência de perda de postos de trabalho e de redução dos ganhos que vem sendo apontada pelo mundo globalizado. Sabem que as mudanças são inevitàveis e que mais cedo ou mais tarde terão que se defrontar com as mesmas, embora os depoimentos criticos e desgostosos indiquem que ainda não estão preparados para estes reveses:

"O Porto de Santos já foi um cisne. Hoje tá mais pra jacaré do que...
Você sabe o que quer dizer crocodilo, né, crocodilagem na gíria é safadeza. "

"Hoje o trabalhador avulso, pela sociedade, ele está marginalizado. "

"Estivador tá sendo um macaco. Tá servindo de palhaço pra fazer palhaçada pros outros. "

"Nós aguardávamos a modernizaçao, mas hoje nós estamos vendo o porto público se fatiando,
eles estão modernizando aquilo que interessa e aquilo que MO interessa, não se moderniza, é por ai!"

"Para o patrão, hoje, talvez nós nao temos valor nenhum, porque se cair, tem dois para ocupar... "

"Eu acho que gostar de sair da estiva, nao... eu gosto dn estiva, isso aqui...
eu amo isso aqui, eu amo o que eufaço!"

Este último estivador, ao se entregar de corpo e alma à entrevista, deixa jorrar palavras marcadas pelo recolhimento e pela sensação de morte que as mudanças no âmbito do trabalho pré-anunciam:

"Olha, vou falar uma coisa pra ti, eu tenho uma coisa... eu tenho medo,eu tenho um negócio comigo, que parece que cada dia que passa a minha vida... se encurta mais.
 Parece que eu perco alguma coisa... eu acho que talvez no ano que vem eu nao esteja mais...
 eu não esteja mais aqui... "

 Considerações finais

Para compreender os estivadores, criamos aqui um "patchwork" reflexivo,que desse conta da elaboração de um momento e de um espaço específicos pertinentes à realidade desta categoria e que fazem parte do fluxo vital que se tenta compreender. Ê óbvio que os fatos aparecem aqui de acordo com a ordem de valores da pesquisadora, segundo seu horizonte de visibilidade.
O real sempre é e será recortado pelas "tesouras" da subjetividade.Entretanto, este estudo pretendeu relativizar a verdade científica sobre os estivadores de Santos, ao valorizar as verdades locais e pontuais e inserilas dentro do conjunto social dado, mostrando sua relação com o sistema de referência na qual se expressam. As falas aqui trazidas têm significado quando seus contornos aderem à trama complexa das circunstâncias que conduziram à sua manifestação.

Os textos destes trabalhadores não são verdades a serem comprovadas,mas caminhos para se compreender a realidade. Se muitas vezes não compartilhamos de suas opiniões, isto deve ser entendido como parte do processo que cria o movimento de descoberta do objeto de conhecimento:
os estivadores.
Até porque a arte deste trabalho está em reconhecer,verificar e descrever esta tensão da forma e do minúsculo da existência cotidiana que são, em si mesmos, plenos de sentido.
Ao passar os olhos pelos textos dos trabalhadores pesquisados, nos deparamos com representações da realidade que traduzem certas atitudes "duplas", como por exemplo o gostar do trabalho e ao mesmo tempo
criticá-lo, o importar-se com as condições de segurança e em seguida desdenhar as situações de perigo, o querer descansar mas pedir ao corpo que trabalhe mais, o não desejar fazer entrevistas mas entregar-se após algum tempo.
Este comportamento mais ou menos consciente sugere o indício da transformação que eles impõem ao seu condicionamento exterior, para torná-lo vivíve1. Ê pela duplicidade que os indivíduos,aparentemente integrados na ordem social, preservam um tanto para si que lhes permita sobreviver às várias imposições desta ordem. É a astúcia contra o sistema opressor.
E é este modo duplo de reagir às situações que cria, dentro da continuidade linear e racional da nossa existência, a descontinuidade, a bobagem, o presente.o tempo e o espaço ocupam um lugar de destaque na perspectiva do nosso olhar.

O tempo linear da história é a todo momento confrontado por estes trabalhadores do Porto. Surge e ressurge, a todo instante, em seus depoimentos, o desejo de eternidade, o qual não pode ser entendido
quando tenta-se apenas apreender apenas o tempo linear da história.
O espaço, por outro lado, é o que estrutura as situações vividas. O espaço molda coercitivamente os hábitos e costumes do dia-a-dia, enraíza e territorializa seus sonhos e práticas, gestando a comunidade dos
estivadores e a solidariedade de base que se forma entre eles.
Na realidade, a espacialização da socialidade serve de antídoto ao angustiante devir do tempo, que lhes traz perspectivas nada favoráveis.
Para que possa ter este efeito, precisa dos rituais repetitivos da vida do dia-a-dia, ou seja, os gritos da competição pelas tomadas de trabalho, as notícias trocadas nas paredes, os encontros na porta do Sindicato, o andar livre e solto pelo cais, os cafés entre-quarteiros, as brincadeiras durante o trabalho, rituais estes que representam o imutável, que constituem sólidas fortalezas na luta contra o destino.

Outro elemento que estrutura a socialidade é a troca que, por essência, é sempre desigual e plural, o que garante a dinâmica da vida social. As suas confidências supõem a troca desigual entre os estivadores e seus
interlocutores, sejam eles operadores portuários, o OGMO, as instituições governamentais, o Sindicato ou os colegas de trabalho pertencentes a outras categorias. Caso assim não fosse, teríamos uma rede de átomos equivalentes, movimentando-se numa solidão comum, abstratamente unidos por um elo dominante, a burocracia.

A violência surge com frequência no depoimento dos estivadores e nos meus, direta ou sutilmente. Aliás, está embutida no próprio recorte feito pela pesquisadora quando relata sua viagem por este projeto de pesquisa.
Entretanto, antes que se lancem os costumeiros olhares julgadores,lembremos que a violência é uma estrutura constante de qualquer conjunto civilizatório. Trata-se de uma centralidade subterránea que
determina certo dinamismo social e que pode se expressar através de conflitos de graus diversos, da mais leve diplomacia á mais violenta guerra.

Na preocupação de controlar a violência considerada maldita, fundada na ideologia da existência pacificada e satisfeita, o poder vigente utiliza todos os recursos da ciência e da técnica para garantir a continuidade legal do seu monopólio administrativo e produtivo. Não obstante, a violência continua a existir e a carregar dentro de si a potencialidade irracional. A prova disto é a crescente violência que se espalha no mundo inteiro atualmente. Este mecanismo de ocultação e manipulação vigente se fragmenta na luta de cada um contra todos, o que faz com que a violência se dilua em agressividade mesquinha e cotidiana.

Mas a violência tem um movimento duplo de destruição e construção,ordem e desordem, uma função catártica que leva á renovação social. À violência imposta pelos poderes vigentes, a classe dos estivadores responde com a violência banal, que pode ser o simples estar junto, a participação afetiva que possui um caráter aglomerativo, e que se constitui das múltiplas e minúsculas paixões que constituem a socialidade. Suas falas apaixonadas e emotivas mostram uma turbulência de afetos contra o fantasma da ordem, que permite a resistência na vida cotidiana.
o presente caótico - fantasma que ronda diariamente a vida destes trabalhadores - deve ser vivido numa intensidade que transcende às projeções de sociedade perfeita do amanhã. O instante precisa ser
consumido em excesso, quando se conhece a sua precariedade. As resistências são expressas pela solidariedade orgânica do grupo, sempre pronto a se defender com unhas e dentes, pelo silêncio, expresso na própria recusa de conceder entrevistas ou entregar a palavra, pela astúcia, demonstrada no saber o quê e quando falar e pela duplicidade, aflorada nas diversas situações de repudiar ou amar o trabalho executado. Estes fatores, em conjunto, lutam contra o monopólio da máquina social, bem azeitada e asséptica, projetada pelos representantes do poder.

O coletivo, item à parte, merece destaque neste estudo. É no e pelo coletivo que todos e cada um se expandem, tentando conseguir um alento ao bemestar comum. Neste sentido, as "paredes", com seus gritos, gargalhadas,rumores, cheiros, fofocas, falam por si, mostrando o quanto aqueles estivadores se perdem no coletivo, na globalidade orgânica, onde há uma correspondência entre os diversos elementos que a integram. Para que esta sociedade dos estivadores se reconheça enquanto tal, é preciso que ela possa colocar em ação a desordem das paixões, ainda que como fator de resistência aos mecanismos de domesticação dos costumes utilizados pelos poderes instituídos.

Os estivadores de Santos adotam comportamentos que, em última instância, obedecem aos três princípios que regem a permanência da socialidade: distância em relação à autoridade opressiva, total ajuda mútua e socorro aos necessitados. Nesta ordem cabe a singularidade das potencialidades multidimensionais de cada um, quando, por exemplo, eles mesmos reconhecem haver os "maus" e "bons" elementos no grupo, bem
como a unidade ao todo, quando "bons"e "maus" permanecem sob o mesmo teto. Há momentos e espaços cotidianos, nos interstícios da vida oficial, que são reapropriados de maneira a expressarem a intensidade do estar-junto. Não é à toa que adoram encontrar-se pelo cais ou nas paredes!
o imoralismo ético ( ético, enquanto desejo de continuidade de um conjunto social ) da categoria conserva uma multiplicidade de atitudes consideradas aberrantes pela moral indicada.
A moral abstrata e imposta nas estruturações individuais / racionais é substituída por uma ética que se origina no grupo como uma "lei do meio". Neste sentido é que se criam as regras próprias do grupo, consideradas verdadeiras e adequadas. Esta ética favorece o conformismo estrito entre os membros do grupo, ao mesmo tempo que possibilita um devotamento irrestrito que reforça o que é comum a todos.

Trata-se de uma "comunidade emocional" que preocupa-se menos com um projeto futuro e mais com a efetivação da pulsão de "estar-junto". Age por contaminação do imaginário coletivo e não propriamente por persuasão de  uma razão social. Não há concordância racional das vontades individuais, mas correspondência entre a vontade singular e o sentimento da comunidade.
O caldo de cultura é fervilhante, monstruoso, desagregado,mas, ao mesmo tempo, rico em possibilidades futuras.

Projeto de pesquisa intitulado
"Representações de trabalho:um estudo dos estivadores de Santos", integrante do PROPOMAR -
Programa Nacional de Pesquisa sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores Portuários e Marítimos.
Projeto realizado pela Fundacentro no período de junho de 1997 a novembro de 1999



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