1 de nov. de 2013

Lembranças de um Portuário do Raul Soares


Portuário perseguido pela ditadura militar 
relembra história do navio-prisão Raul Soares em Santos
Ademar dos Santos, Ademarzinho, era, em 1964, sindicalista portuário. Foi perseguido pela ditadura militar, preso e trancafiado no navio-prisão. Hoje, aos 80 anos de idade e doente, ele relembra cada detalhe de sua prisão e dos bastidores do cárcere flutuante no Porto de Santos. E fala sobre esse período triste para o sindicalismo e para a própria história do País.
Funcionário da extinta Companhia Docas de Santos (CDS) no cargo de Eletrotécnico, o doqueiro Ademar dos Santos, conhecido no cais entre os portuários como Ademarzinho, diz que foi o último preso civil a deixar o navio-presídio Raul Soares, em 23 de outubro de 1964, fato ocorrido à noite. Ele tinha 29 anos de idade, era casado e pai de dois filhos, quando foi preso pela ditadura militar e trancafiado no navio-prisão “Raul Soares”. Sua prisão foi longa, durou 92 dias, tempo em que permaneceu incomunicável.Para relembrar esse período triste para o sindicalismo e para a própria história do País, Ademarzinho recebeu a reportagem do DL em sua residência. Aos 80 anos de idade, ele lembra dos bastidores e cita nomes de civis e militares. Simpático e bastante falante, diz cada detalhe da sua prisão e dos personagens desta história de luta, tortura e sobrevivência no cárcere flutuante.
O primeiro documento que ele exibe ao Diário do Litoral é um ofício assinado pelo almirante Júlio de Sá Bierrembach, capitão dos portos, que confirma a data de sua prisão e chegada no navio Raul Soares: 17 de junho de 1964. “Foram momentos tensos, de preocupação para meus familiares. Logo após o golpe de 31 de março, os sindicatos foram invadidos. Todo mundo do sindicato já tinha sido procurado para depor e eu ainda não. Eu sabia que ia ser preso. Procurei o advogado Eraldo Aurélio Franzese, que fez uma carta pedindo a minha volta à empresa, uma vez que não estava mais exercendo mandato sindical, pois o Sindicato dos Operários Portuários(Sintraport) estava sob intervenção”, relata o ex-sindicalista. Menciona que o pedido foi negado, pois ele já estava respondendo a processo.
Ademarzinho lembra todos os detalhes do dia em que foi preso. “Um carro da antiga CDS (Companhia Docas de Santos) foi à minha casa. Era um policial civil das Docas; meu colega, que jogou bola comigo”, narra o ex-preso do Raul Soares.E prossegue: “Ele disse que eu seria preso. E fui preso mesmo. Tomaram meu depoimento e eu fui dispensado. No dia seguinte, foram me buscar em minha casa, na Zona Noroeste. A ordem era para eu ir ao departamento pessoal. Tinha um envelope amarelo pronto, com ordem de prisão. Me colocaram em um camburão e me levaram. Tomei o cuidado de ver se o cano do escapamento não estava para dentro, como faziam os nazistas”. Ele diz que só teve noção do destino, quando ouviu o barulho das tábuas da Ponte Pênsil, em São Vicente.
“Me levaram, por engano, para a Fortaleza do Itaipú, em Praia Grande. No dia seguinte, outra viatura me pegou para me levar para o quartel dos fuzileiros navais, na Avenida Afonso Pena, em Santos. De lá, uma outra viatura policial me levou, no dia seguinte, ao navio Raul Soares”.Ele relata que, militares suspeitos, ou que não participaram do golpe que depôs Jango, também estiveram presos no navio, em setor separado dos presos políticos.“A Polícia Marítima, que era estadual, tomava conta da gente; e a Marinha tomava conta deles”, explica Ademarzinho.
Em seu relato ao DL, Ademarzinho rememora os fatos alegados pelos militares para a sua prisão. “Uma foto minha em um jornal, na terceira fila de um evento político no Rio de Janeiro, onde se encontrava o cabo José Anselmo, que se envolveu em luta armada, foi um dos motivos alegados para minha prisão. Eu estava acompanhado do presidente do Sintraport, Manoel de Almeida, no Rio de Janeiro, para um debate sobre a demarcação de uma área insalubre em Santos. O evento foi cancelado pelo ministro do Trabalho e fomos convidados para uma festa. A Associação dos Marinheiros estava comemorando dois anos, e ia homenagear o marinheiro João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata”.
E acrescenta que os seus interrogadores faziam-lhe uma tortura psicológica querendo saber qual foi sua “missão” naquele evento político. A ida a um congresso de trabalhadores em minérios, em Belo Horizonte, evento recheado de personalidades políticas também rendeu suspeitas e acusações e mais torturas psicológicas. Ele lembra: “os mineiros queriam um aumento e a empresa estava irredutível. Durante uma assembleia no sindicato foi definida a delegação: era eu, Nelson Salinas Meira e Elmo Poderoso Giangiulio. Um advogado subiu para falar e a multidão quis invadir. Quem tomou a palavra e pôs ordem foi o Leonel Brizola. Também estavam lá o Miguel Arraes e o Francisco Julião, líder das ligas camponesas do Nordeste. Quando pegaram meu nome e o de outros, naquele encontro, queriam saber qual era a “missão” que o Partido Comunista tinha dado para mim. Eu disse que levava apenas uma representação do nosso sindicato, em solidariedade, nada mais que isso”.
E para completar as coincidências que culminaram com a sua prisão, o ex-sindicalista portuário santista esteve no badalado e comentado comício da Central do Brasil, em que Jango anunciou as chamadas “reformas de base”. Nesta viagem, o chefe da delegação do Sindicato dos Portuários de Santos era outro sindicalista: Iradil dos Santos Mello, também um dos inúmeros presos no cárcere flutuante.
Ademarzinho relata que, dos 129 acusados no Inquérito Policial-Militar (IPM) do Porto de Santos, ele foi o primeiro a ser ouvido. “Por uma simples razão, a ordem alfabética”. E afirma: “O sindicalismo de Santos era forte e muito temido pelas autoridades do País. Decretar intervenção nos sindicatos e prender os sindicalistas num navio foi a forma de intimidar, fazer o sindicalismo santista se curvar, para minar nossa força e nossa resistência. Uma forma de exemplo para todo o País. E o objetivo dos militares foi alcançado, porque Santos pagou caro ficando muitos anos sem poder eleger seu prefeito”.
“Quando os militares invadiram os sindicatos, pensavam que iam encontrar armas como metralhadoras e fuzis, e não encontraram sequer um estilingue. Queriam encontrar material subversivo e encontraram só algumas revistas masculinas”.E conclui: “meu depoimento, por orientação do advogado do sindicato Eraldo Franzese teve apenas seis linhas e foi baseado nas frases: não sei, não vi, não soube de nada disso e nunca ouvi falar”.
Camarote 29

Ele diz que na chegada ao cais, assistiu cenas muito comoventes, pois dezenas de pessoas aguardavam para serem presas. “Eu vi senhores, de cabelos grisalhos, acima de 60 anos, chorando”.
E diz: “com o Tenente Mário, da Marinha, descemos a escada e chegamos ao destino naquele navio de tão triste lembrança. O tenente disse: ‘O senhor vai ficar bem aqui’. Meu camarote era o de número 29. Em cima dele estava escrito: Carpinteiro. Era um bom camarote do tempo em que o navio era um transatlântico. Pensei comigo: Jesus foi carpinteiro e meu avô também foi carpinteiro naval. Se eu vou ficar preso no camarote do carpinteiro, então estou em casa. Neste camarote eu fiquei 92 dias, incomunicável. Só saía para buscar a comida, no convés, e ir ao banheiro. Havia um tenente, Hugo Panasco Alvim Filho, que me perseguiu desde que cheguei ao navio, do primeiro ao último dia. Ele me escalava para as tarefas mais humilhantes, como limpar ou desentupir latrinas”, relembra Ademarzinho.
Mas a maior humilhação que ele diz ter passado e quase todos os presos civis também, principalmente os que estavam incomunicáveis, era o de ter que fazer as necessidades fisiológicas com a porta do banheiro aberta e sendo vigiado e olhado por um guarda com uma metralhadora na mão.
Ademarzinho, hoje com graves problemas de saúde, diz que esses problemas começaram com sua prisão e as torturas psicológicas que sofreu no cárcere flutuante. “Tomo calmantes há quase meio século, mas me orgulho de minha mente, que funciona muito bem, pois me lembro de tudo o que ocorreu”.Ele diz que o inquérito que respondeu foi por atividades políticas e trabalhistas e menciona que esteve em lugares que lhe comprometeram muito. “Em três deles”, lembra Ademarzinho, “fui escolhido em assembleia registrada em ata do sindicato”.Ele diz que os militares queriam saber de suas ligações com lideranças da esquerda. O interrogatório, no navio-prisão, era sempre o mesmo, e cada vez mais demorado. Diz que um oficial o chamava às 4 da tarde e ficava, às vezes, até 3 da manhã sendo interrogado. Ele ia embora e vinha outro. “Eu não podia dormir”.
Fonte: CUT

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