Portuário perseguido pela ditadura militar
relembra
história do navio-prisão Raul Soares em Santos
Ademar dos Santos, Ademarzinho, era, em 1964, sindicalista portuário. Foi
perseguido pela ditadura militar, preso e trancafiado no navio-prisão. Hoje,
aos 80 anos de idade e doente, ele relembra cada detalhe de sua prisão e dos
bastidores do cárcere flutuante no Porto de Santos. E fala sobre esse período
triste para o sindicalismo e para a própria história do País.
Funcionário da extinta Companhia Docas de Santos (CDS) no cargo de
Eletrotécnico, o doqueiro Ademar dos Santos, conhecido no cais entre os
portuários como Ademarzinho, diz que foi o último preso civil a deixar o
navio-presídio Raul Soares, em 23 de outubro de 1964, fato ocorrido à noite.
Ele tinha 29 anos de idade, era casado e pai de dois filhos, quando foi preso
pela ditadura militar e trancafiado no navio-prisão “Raul Soares”. Sua prisão
foi longa, durou 92 dias, tempo em que permaneceu incomunicável.Para relembrar esse período triste para o sindicalismo e para a própria
história do País, Ademarzinho recebeu a reportagem do DL em sua residência. Aos
80 anos de idade, ele lembra dos bastidores e cita nomes de civis e militares.
Simpático e bastante falante, diz cada detalhe da sua prisão e dos personagens
desta história de luta, tortura e sobrevivência no cárcere flutuante.
O primeiro documento que ele exibe ao Diário do Litoral é um ofício
assinado pelo almirante Júlio de Sá Bierrembach, capitão dos portos, que
confirma a data de sua prisão e chegada no navio Raul Soares: 17 de junho de
1964. “Foram momentos tensos, de preocupação para meus familiares. Logo após o
golpe de 31 de março, os sindicatos foram invadidos. Todo mundo do sindicato já
tinha sido procurado para depor e eu ainda não. Eu sabia que ia ser preso.
Procurei o advogado Eraldo Aurélio Franzese, que fez uma carta pedindo a minha
volta à empresa, uma vez que não estava mais exercendo mandato sindical, pois o
Sindicato dos Operários Portuários(Sintraport) estava sob intervenção”, relata
o ex-sindicalista. Menciona que o pedido foi negado, pois ele já estava
respondendo a processo.
Ademarzinho lembra todos os detalhes do dia em que foi preso. “Um carro
da antiga CDS (Companhia Docas de Santos) foi à minha casa. Era um policial
civil das Docas; meu colega, que jogou bola comigo”, narra o ex-preso do Raul
Soares.E prossegue: “Ele disse que eu seria preso. E fui preso mesmo. Tomaram
meu depoimento e eu fui dispensado. No dia seguinte, foram me buscar em minha
casa, na Zona Noroeste. A ordem era para eu ir ao departamento pessoal. Tinha
um envelope amarelo pronto, com ordem de prisão. Me colocaram em um camburão e
me levaram. Tomei o cuidado de ver se o cano do escapamento não estava para
dentro, como faziam os nazistas”. Ele diz que só teve noção do destino, quando
ouviu o barulho das tábuas da Ponte Pênsil, em São Vicente.
“Me levaram, por engano, para a Fortaleza do Itaipú, em Praia Grande. No
dia seguinte, outra viatura me pegou para me levar para o quartel dos
fuzileiros navais, na Avenida Afonso Pena, em Santos. De lá, uma outra viatura
policial me levou, no dia seguinte, ao navio Raul Soares”.Ele relata que, militares suspeitos, ou que não participaram do golpe
que depôs Jango, também estiveram presos no navio, em setor separado dos presos
políticos.“A Polícia Marítima, que era estadual, tomava conta da gente; e a
Marinha tomava conta deles”, explica Ademarzinho.
Em seu relato ao DL, Ademarzinho rememora os fatos alegados pelos
militares para a sua prisão. “Uma foto minha em um jornal, na terceira fila de
um evento político no Rio de Janeiro, onde se encontrava o cabo José Anselmo,
que se envolveu em luta armada, foi um dos motivos alegados para minha prisão.
Eu estava acompanhado do presidente do Sintraport, Manoel de Almeida, no Rio de
Janeiro, para um debate sobre a demarcação de uma área insalubre em Santos. O
evento foi cancelado pelo ministro do Trabalho e fomos convidados para uma
festa. A Associação dos Marinheiros estava comemorando dois anos, e ia
homenagear o marinheiro João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata”.
E acrescenta que os seus interrogadores faziam-lhe uma tortura
psicológica querendo saber qual foi sua “missão” naquele evento político. A ida
a um congresso de trabalhadores em minérios, em Belo Horizonte, evento recheado
de personalidades políticas também rendeu suspeitas e acusações e mais torturas
psicológicas. Ele lembra: “os mineiros queriam um aumento e a empresa estava
irredutível. Durante uma assembleia no sindicato foi definida a delegação: era
eu, Nelson Salinas Meira e Elmo Poderoso Giangiulio. Um advogado subiu para
falar e a multidão quis invadir. Quem tomou a palavra e pôs ordem foi o Leonel
Brizola. Também estavam lá o Miguel Arraes e o Francisco Julião, líder das
ligas camponesas do Nordeste. Quando pegaram meu nome e o de outros, naquele
encontro, queriam saber qual era a “missão” que o Partido Comunista tinha dado
para mim. Eu disse que levava apenas uma representação do nosso sindicato, em
solidariedade, nada mais que isso”.
E para completar as coincidências que culminaram com a sua prisão, o
ex-sindicalista portuário santista esteve no badalado e comentado comício da
Central do Brasil, em que Jango anunciou as chamadas “reformas de base”. Nesta
viagem, o chefe da delegação do Sindicato dos Portuários de Santos era outro
sindicalista: Iradil dos Santos Mello, também um dos inúmeros presos no cárcere
flutuante.
Ademarzinho relata que, dos 129 acusados no Inquérito Policial-Militar
(IPM) do Porto de Santos, ele foi o primeiro a ser ouvido. “Por uma simples
razão, a ordem alfabética”. E afirma: “O sindicalismo de Santos era forte e
muito temido pelas autoridades do País. Decretar intervenção nos sindicatos e
prender os sindicalistas num navio foi a forma de intimidar, fazer o
sindicalismo santista se curvar, para minar nossa força e nossa resistência.
Uma forma de exemplo para todo o País. E o objetivo dos militares foi
alcançado, porque Santos pagou caro ficando muitos anos sem poder eleger seu
prefeito”.
“Quando os militares invadiram os sindicatos, pensavam que iam encontrar
armas como metralhadoras e fuzis, e não encontraram sequer um estilingue.
Queriam encontrar material subversivo e encontraram só algumas revistas
masculinas”.E conclui: “meu depoimento, por
orientação do advogado do sindicato Eraldo Franzese teve apenas seis linhas e
foi baseado nas frases: não sei, não vi, não soube de nada disso e nunca ouvi
falar”.
Camarote 29
Ele diz que na chegada ao cais,
assistiu cenas muito comoventes, pois dezenas de pessoas aguardavam para serem
presas. “Eu vi senhores, de cabelos grisalhos, acima de 60 anos, chorando”.
E diz: “com o Tenente Mário, da Marinha, descemos a escada e chegamos ao destino naquele navio de tão triste lembrança. O tenente disse: ‘O senhor vai ficar bem aqui’. Meu camarote era o de número 29. Em cima dele estava escrito: Carpinteiro. Era um bom camarote do tempo em que o navio era um transatlântico. Pensei comigo: Jesus foi carpinteiro e meu avô também foi carpinteiro naval. Se eu vou ficar preso no camarote do carpinteiro, então estou em casa. Neste camarote eu fiquei 92 dias, incomunicável. Só saía para buscar a comida, no convés, e ir ao banheiro. Havia um tenente, Hugo Panasco Alvim Filho, que me perseguiu desde que cheguei ao navio, do primeiro ao último dia. Ele me escalava para as tarefas mais humilhantes, como limpar ou desentupir latrinas”, relembra Ademarzinho.
E diz: “com o Tenente Mário, da Marinha, descemos a escada e chegamos ao destino naquele navio de tão triste lembrança. O tenente disse: ‘O senhor vai ficar bem aqui’. Meu camarote era o de número 29. Em cima dele estava escrito: Carpinteiro. Era um bom camarote do tempo em que o navio era um transatlântico. Pensei comigo: Jesus foi carpinteiro e meu avô também foi carpinteiro naval. Se eu vou ficar preso no camarote do carpinteiro, então estou em casa. Neste camarote eu fiquei 92 dias, incomunicável. Só saía para buscar a comida, no convés, e ir ao banheiro. Havia um tenente, Hugo Panasco Alvim Filho, que me perseguiu desde que cheguei ao navio, do primeiro ao último dia. Ele me escalava para as tarefas mais humilhantes, como limpar ou desentupir latrinas”, relembra Ademarzinho.
Mas a maior humilhação que ele diz ter passado e quase todos os presos
civis também, principalmente os que estavam incomunicáveis, era o de ter que
fazer as necessidades fisiológicas com a porta do banheiro aberta e sendo
vigiado e olhado por um guarda com uma metralhadora na mão.
Ademarzinho, hoje com graves problemas de saúde, diz que esses problemas
começaram com sua prisão e as torturas psicológicas que sofreu no cárcere
flutuante. “Tomo calmantes há quase meio século, mas me orgulho de minha mente,
que funciona muito bem, pois me lembro de tudo o que ocorreu”.Ele diz que o inquérito que respondeu foi por atividades políticas e
trabalhistas e menciona que esteve em lugares que lhe comprometeram muito. “Em
três deles”, lembra Ademarzinho, “fui escolhido em assembleia registrada em ata
do sindicato”.Ele diz que os militares queriam saber de suas ligações com lideranças
da esquerda. O interrogatório, no navio-prisão, era sempre o mesmo, e cada vez
mais demorado. Diz que um oficial o chamava às 4 da tarde e ficava, às vezes,
até 3 da manhã sendo interrogado. Ele ia embora e vinha outro. “Eu não podia
dormir”.
Fonte: CUT
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