O Dia de trabalho de
um Estivador
Sexta-feira, 6h30. A primeira manhã de primavera
mal começou.
O comércio do centro ainda dorme.
Mas Luiz Moreira
Guimarães, 65 anos,
já está a todo vapor para mais um dia de trabalho como
estivador no Porto de Santos.
É tudo o que sabe — e gosta — de fazer. Há ‘‘mais
ou menos 50 e poucos anos’’.
‘‘Todo mundo na minha família era estivador. E
tenho um filho que também é.
A conversa é travada num dos terrenos das três
‘‘paredes’’ do cais santista,
termo para designar o local onde o trabalho é
distribuído entre os cerca de 3.400 estivadores
que ainda estão na ativa —
Guimarães incluído na lista.
Orgulhoso, mostra a carteira com o número 8,
indicando ter sido um dos primeiros no universo de milhares.
A ‘‘parede’’, que começa dali a 15 minutos, fica
nas proximidades do Armazém 11,
no Paquetá, onde geralmente são oferecidos os
trabalhos nos navios de açúcar.
A cada dois dias da semana os estivadores têm,
obrigatoriamente,
de mudar o ponto de escala,
de tal forma que todos atuem nos
diversos tipos de operação
de contêineres a
granéis químicos no Porto de Santos.
Os trabalhadores começam a chegar, somente uma
minoria vem de automóvel.
A maioria tem moto, mais acessível ao bolso do
estivador,
acostumado com uma média salarial mensal de R$ 1.850,00.
‘‘O sonho
de todo estivador é ter um carro’’,
destaca o primeiro-secretário do Sindicato
da Estiva, João Barbosa Soares.
Por ter sido chamado para trabalhar por
um período de seis horas,
o estivador recebe R$ 30,00, faça chuva ou faça sol.
‘‘Mesmo que quebre alguma coisa no navio que impeça o nosso trabalho,
ganhamos
os R$ 30,00’’, explicou Soares.
Caso haja um excedente de produção
durante o trabalho,
o ganho passa a ser correspondente à tonelagem embarcada.
Vem daí o senso comum de que trabalhar com contêiner dá mais lucro.
De fato.
Soares explica que o trabalho no açúcar
é um dos mais procurados por ser,
nos dias atuais, um dos mais genuínos.
É ali
que se faz propriamente a estivagem da carga.
No caso do açúcar ensacado,
são dois homens
carregando a saca e acomodando-a no porão de um navio.
Não raro, o açúcar
escorre, um ou outro saco fura, a carga, exposta ao sol,
se aquece e o cheiro
toma conta do navio,
podendo ser sentido mesmo por quem passa de carro ao largo
da embarcação atracada,
na via portuária.
Já com o contêiner o trabalho é mais
impessoal,
asséptico arrumam-se sem saber o que há dentro.
A sensação é traduzida por Soares:
‘‘o
açúcar tem aquele romantismo do porto de antigamente.
A essência da estivagem foi absorvida pelo
mecanismo do contêiner’’.
Quando batem as 6h45 começa a
distribuição dos trabalhos.
A memorável cena em que os estivadores erguem os
braços com a carteira de trabalho
em riste,
duelando entre si para ser o
escolhido pelo mestre , ainda permanece.
Apesar da Lei de Modernização dos
Portos 8.630/1993 implantar um rodízio,
em que todos os trabalhadores avulsos
são escalados,
há hoje uma competição para participar do terno
supostamente
mais forte ou onde haja mais amigos,
indiretamente mantendo a antiga tradição.
A diferença fundamental, explica
Soares,
é que na época anterior à Lei, o mestre escolhia os trabalhadores.
E
hoje é ao contrário.
Os trabalhadores é que se oferecem para atuar nesse ou
naquele navio.
Feita a escala, os grupos seguem para a
zona primária do cais,
onde estão atracados os navios.
Em poucos minutos, o
terreno onde a parede acabara de ser feita fica vazio.
Mais um dia de trabalho
está começando.
Para um ‘‘marinheiro de primeira
viagem’’, a chegada a um navio pode ser assustadora
. Ainda mais se a embarcação
estiver vazia, com os porões abertos,
prestes a ter as mercadorias embarcadas.
Como é o caso de um açucareiro de grandes dimensões.
Os estivadores descem aos porões por
uma escadaria dentro de um tubo.
São cerca de 30 metros de altura contados a
partir do convés do navio
equivalente a um prédio de três andares.
Lá embaixo, os trabalhadores de Bloco
forram o chão com um papelão,
preparando o piso para a chegada da carga.
O
trabalho portuário é todo feito em equipe.
Os estivadores entram em cena para manusear a
lingada de açúcar
feita pelos trabalhadores de capatazia ou doqueiros,
uma
espécie de ‘‘estivadores de terra’’.
‘‘Pô, Sidnei, 30 anos de cais e não aprende’’
, grita o doqueiro Fábio,
brincando com o companheiro,
que não teria amarrado bem as sacas de açúcar
para
a suspensão do conjunto ainda no cais.
Reparação feita, a cena que se segue é digna de
foto.
A lingada é içada pelo operador de guindaste do lado de terra e
lentamente deslocada para o lado de mar,
descendo em seguida até o fundo do
porão, onde estão os estivadores.
‘‘Isso aqui é fascinante.
Quem bebe dessa
água não esquece’’,
explica o primeiro-secretário do Sindicato da Estiva, João
Barbosa Soares.
As roupas de trabalho são um capítulo à parte.
O que se observa
hoje no porão difere em muito da” moda” dos idos anos 30,
quando,
conforme pode
ser atestado na galeria de fotos na sede do Sindicato da Estiva,
o antológico
Navalhada aparecia trajando terno,
gravata borboleta e chapéu para trabalhar.
Igual a ele, havia muitos.
‘‘Lógico que conforme a operação começava, eles iam
tirando os apetrechos’’,
explica Soares. ‘‘Mas o estivador era muito vaidoso,
sim’’,
completou.
Pudera.
Naquela época, a categoria era uma das que melhor
recebiam no porto.
fonte Da parede ao porão, o dia
de um estivador
[A Tribuna (SP) - 27/09/2005]
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