6 de out. de 2017

Os Sentidos da Integralidade


O que é integralidade? Poderíamos dizer, numa primeira aproximação, que é uma das diretrizes básicas do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição de 1988. De fato, o texto constitucional não utiliza a expressão integralidade; ele fala em “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” (BRASIL, 1988, art. 198).
 Mas o termo integralidade tem sido utilizado correntemente para designar exatamente essa diretriz. A Constituição de 88, que se tornou conhecida como a Constituição Cidadã, tem como uma de suas marcas o reconhecimento de muitos direitos de cidadania. 
A saúde, por exemplo, é reconhecida como direito de todos e um dever do Estado. 
De acordo com o texto constitucional, deveria caber ao Estado a tarefa de garantir a saúde para todos, através de políticas sociais e econômicas voltadas tanto para a “redução do risco de doença e de outros agravos”, quanto “ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”
É nessa segunda perspectiva que a Constituição reconhece a relevância pública das ações e serviços de saúde, e delineia um sistema único (o SUS), integrado pelas ações e serviços públicos de saúde, mas do qual também podem participar, em caráter complementar, instituições privadas. O que caracteriza esse Sistema Único de Saúde (que de modo algum é o único sistema de saúde no Brasil) é seu financiamento público. Esse sistema único de saúde estaria organizado em torno de três diretrizes: a descentralização, com direção única em cada esfera de governo; o atendimento integral; e a participação da comunidade.
Esse arcabouço não refletia as posições que à época ganhavam destaque no debate internacional sobre como deveriam ser as políticas de saúde, sobretudo nos países em desenvolvimento. Pelo contrário, após quase uma década de propostas de ajustes estruturais, de avanço das idéias neoliberais, o debate internacional parecia sugerir fortemente a redução da presença governamental, tanto na economia como em algumas questões sociais. Postura que ao final da década de 80 chegava às propostas de redução da participação do Estado na saúde, revertendo as expectativas suscitadas pela conferência de Alma-Ata. Assim, em 1987, o Banco Mundial publicava um texto provocativo, no qual afirmava categoricamente que “a abordagem mais comum para os cuidados de saúde nos países em desenvolvimento tem sido tratá-lo como um direito do cidadão e tentar prover serviços gratuitos para todos. Essa abordagem geralmente não funciona” (WORLD BANK, 1987, p. 3).
É, pois, evidente o contraste entre a posição brasileira e a posição defendida, por exemplo, pelo Banco Mundial. Mas não deixa de ser interessante registrar que, embora concebidas com perspectivas contraditórias, a proposta universalista expressa na Constituição brasileira e algumas propostas mais restritivas (como as defendidas pelo Banco Mundial nos anos 90) partilham de algumas diretrizes comuns: a defesa da descentralização e da participação popular. Isso nos leva a pensar que muitas das suas diferenças girem em torno da adesão ou não ao princípio da integralidade. 
Exatamente por essa hipótese é que talvez seja oportuno refletir sobre os sentidos atribuídos à integralidade, com vistas a identificar as marcas específicas das políticas e das práticas que relacionamos à integralidade. E, desta forma, contribuir para o debate sobre a existência de uma certa especificidade na reforma sanitária brasileira e no projeto societário que a move. Mas o texto constitucional não é senão um marco num processo mais amplo de lutas políticas travadas na arena nacional, pelo menos desde a década de 70. 
A concepção de saúde como direito de todos no Brasil não é simplesmente uma abordagem tradicional, como parece insinuar aquele trecho do Banco Mundial. 
Ela, assim como o arcabouço institucional do SUS, deriva das reivindicações postas pelo movimento sanitário desde a década de 70, quando, no contexto da luta pela redemocratização do país e da construção de uma sociedade mais justa, um conjunto expressivo de intelectuais e militantes se engajou no esforço de construir uma crítica ao então sistema nacional de saúde, às instituições de saúde e às práticas de saúde então hegemônicas. Crítica que alimentou o sonho de uma transformação radical da concepção de saúde predominante, do sistema de serviços e ações de saúde e de suas práticas. 
Na tentativa de realizar esse sonho foram forjados os princípios e diretrizes que mais tarde seriam acolhidos no texto da Constituição. Voltando à pergunta inicial, diríamos que a integralidade não é apenas uma diretriz do SUS definida constitucionalmente.
 Ela é uma “bandeira de luta”, parte de uma “imagem-objetivo”, um enunciado de certas características do sistema de saúde, de suas instituições e de suas práticas que são consideradas por alguns (diria eu, por nós), desejáveis. Ela tenta falar de um conjunto de valores pelos quais vale lutar, pois se relacionam a um ideal de uma sociedade mais justa e mais solidária. Ainda não respondemos à pergunta inicial. O que fizemos foi tão-somente explicitar um dos contextos de uso da expressão, que é exatamente aquele que nos interessa neste trabalho. Colocar a integralidade como parte de uma “imagem-objetivo” que nos moveu e nos move tem uma série de implicações para este trabalho.
 A noção de “imagem-objetivo” tem sido usada na área de planejamento para designar uma certa configuração de um sistema ou de uma situação que alguns atores na arena política consideram desejável. Diferencia-se de uma utopia pelo fato de que os atores que a sustentam julgam que tal configuração pode ser tornada real num horizonte temporal definido. Enuncia-se uma imagem-objetivo com o propósito principal de distinguir o que se almeja construir, do que existe. Toda imagem-objetivo tenta indicar a direção que queremos imprimir à transformação da realidade. 
De certo modo, uma imagem objetivo (pelo menos as imagens-objetivo construídas nas lutas por transformações sociais) parte de um pensamento crítico, um pensamento que se recusa a reduzir a realidade ao que “existe”, que se indigna com algumas características do que existe e almeja superá-las. Os enunciados de uma imagem-objetivo sintetizam nosso movimento. Ao enunciar aquilo que, segundo nossa aspiração, existirá, a imagem-objetivo também fala, embora sinteticamente, daquilo que criticamos no que existe, e que nos levou a sonhar com uma outra realidade. Mas a imagem-objetivo nunca é detalhada.
 Ela não se confunde com um projeto altamente específico, que indica as nuanças que a configuração futura sonhada terá. Ao contrário, ela sempre é expressa através de enunciados gerais. Por exemplo, voltando para a imagem-objetivo que moveu o movimento sanitário, ela propõe a descentralização, sem se preocupar em detalhar se ela assumiria a forma de uma municipalização radical, ou se chegaria ao nível dos serviços; ela fala em participação popular, sem especificar as formas pela qual tal participação se constituiria. 
As imagens objetivo funcionam como tal exatamente por abarcarem várias leituras distintas, vários sentidos diversos. Exatamente por isso ela pode, num certo momento, aglutinar em torno dela atores políticos que comungam de indignações semelhantes, mesmo que tenham projetos específicos distintos. Dito de outra forma, toda imagem-objetivo é polissêmica, ou seja, tem vários sentidos. Sentidos correlatos, sem dúvida, posto que forjados num mesmo contexto de luta e articulados entre si. Mas sentidos distintos, que permitem que vários atores, cada qual com suas indignações e críticas ao que existe, comunguem nessas críticas e, pelo menos por um instante, pareçam comungar os mesmos ideais. Mais importante do que isso, uma imagem-objetivo não diz de uma vez por todas como a realidade deve ser. Ela traz consigo um grande número de possibilidades de realidades futuras, a serem criadas através de nossas lutas, que têm em comum a superação daqueles aspectos que se criticam na realidade atual (que almejamos transformar). Integralidade, no contexto da luta do movimento sanitário, parece ser assim: uma noção amálgama, prenhe de sentidos. Nessa perspectiva, aquela pergunta inicial – o que é integralidade? – talvez não deva ter resposta unívoca. Talvez não devamos buscar definir de uma vez por todas a integralidade, posto que desse modo poderíamos abortar alguns dos sentidos do termo e, com eles, silenciar algumas das indignações de atores sociais que conosco lutam por uma sociedade mais justa. Mas deve-se dizer de imediato que a luta pela construção de um sistema de saúde justo e que concretize o ideário expresso no texto constitucional não se encerrou. Certamente temos caminhado muito ao longo desses pouco mais de dez anos que nos separam da sua promulgação. O SUS hoje é uma realidade. 
O acesso aos serviços e ações de saúde ampliou-se muito quando comparamos à década de 70. Construiu-se um arcabouço institucional para dar conta da diretriz da participação popular, com a criação de conselhos e conferências de saúde, e a descentralização também tem avançado, embora gradualmente. Em geral, o processo político em saúde envolve hoje um conjunto de atores muito mais amplo do que outrora. 
E, mais recentemente, têm sido implementadas propostas que visam diretamente a modificar o modo de organização dos serviços e das práticas assistenciais. 
Não há dúvidas de que caminhamos muito na direção que sonhávamos, mas há muito mais a caminhar, e ainda há riscos de que num futuro, pressionados pelo estrangulamento de recursos públicos e/ou pela difusão das idéias ofertadas por algumas agências internacionais, os caminhos do SUS se afastem da concepção originária de garantir o acesso universal, igualitário e gratuito aos serviços e ações de saúde. 
A luta, portanto, continua e é travada cotidianamente no interior dos serviços de saúde, nas reuniões de técnicos e gestores do SUS nos seus diversos níveis, nas novas arenas de negociação e pactuação entre gestores e nos debates nas instâncias que contam com a participação popular. Queremos neste trabalho refletir sobre a noção de integralidade, ou melhor, sobre as noções de integralidade no contexto do debate sobre os rumos do SUS. Mas, se os ideais que perseguimos desde os anos 70 parecem ser os mesmos ainda hoje (pelo menos continuamos a usar as mesmas bandeiras de luta), o lugar no qual debatemos é bastante distinto. As noções de integralidade, assim como os demais princípios e diretrizes do SUS, foram forjadas num lugar de oposição, a partir de uma crítica radical às práticas, às instituições e à organização do sistema de saúde. Entretanto, os que defendem o SUS hoje o fazem de um lugar híbrido de situação / oposição. 
Como defensores do SUS, são por vezes instados a defendê-lo frente a ataques críticos, ao mesmo tempo em que têm o compromisso de seguir criticando as imperfeições do SUS para superá-las. Difícil tarefa para nossa cultura, na qual nos habituamos a criticar os adversários mais do que os aliados ou a nós mesmos. É compreensível que, desde esse lugar híbrido, a força da crítica e da indignação com aspectos do que existe, que subjazem nos princípios orientadores do SUS, tende a perder sua intensidade, ou sua centralidade.
 E que pode esvaziar os significados desses mesmos princípios.
 Uma das formas desse esvaziamento é exatamente a banalização do uso, ou seja, o uso de uma expressão de tal modo que todos a defendam, mas o façam sem saber exatamente o que defendem. Desse modo, as noções deixam de ser capazes de diferenciar aspectos e valores presentes em diferentes configurações do sistema, das instituições ou das práticas nos serviços de saúde, perdendo, assim, sua utilidade na luta política.
 Caberia pois perguntar: integralidade segue sendo uma noção, ou um conjunto de noções úteis para discriminar certos valores e características que julgamos desejáveis no nosso sistema de saúde? Ela ainda segue sendo um bom indicador da direção que desejamos imprimir ao sistema e suas práticas e, portanto, segue indicando aquilo que é criticável no sistema e nas práticas de saúde que existem hoje? Uma resposta afirmativa a essas questões é a “hipótese” deste trabalho. 
Hipótese entre aspas, porque não se pretende aqui demonstrá-la de uma vez por todas.
 O que se fará é argumentar em sua defesa. E buscaremos os argumentos numa análise dos vários sentidos da integralidade. Sem a preocupação de fazer uma história do conceito, como um Bachelard ou um Canguilhem recomendariam, procuraremos identificar alguns dos diversos matizes que compuseram essa “imagem-objetivo”, procurando reconhecer o que implicitamente cada um deles criticava na realidade, e em que sentido tentavam superar as mazelas que viam. Trata-se, pois, de uma reflexão sobre os sentidos da integralidade. Essa reflexão não toma como ponto de partida uma definição do que é integralidade. 
Ao contrário, toma como ponto de partida alguns dos usos do termo e, portanto, dos sentidos do termo. Analisando o contexto desses usos, procura-se aqui reconstruir a crítica que a eles subjaz, para refletir sobre a atualidade e a pertinência dessa crítica. Este trabalho se aproxima mais de um positional paper do que um trabalho tipicamente acadêmico. Não se procedeu a um inventário completo dos usos do termo integralidade; tomei a liberdade de abordar os usos que me parecem ser os mais relevantes na construção do amálgama da integralidade. Em não tendo feito tal inventário, não temos plena consciência dos vieses dessa escolha. 
De mesmo modo, a reflexão que se faz aqui tem forte marca pessoal. Portanto, o texto é, antes de qualquer coisa, um convite para que o leitor se engaje, com sua crítica, no processo de construção coletiva de uma reflexão acerca dos potenciais e limites da noção de integralidade no contexto da construção de políticas, sistemas e práticas de saúde mais justas.

fonte Os Sentidos da Integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos1RUBEN  ARAUJO DE MATTOS


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