Da parede ao porão, o dia de um estivador
Sexta-feira, dia 23 de setembro, 6h30. A primeira manhã de primavera mal começou.
O comércio do centro ainda dorme. Mas Luiz Moreira Guimarães, 65 anos, já está a todo vapor para mais um dia de trabalho como estivador no Porto de Santos. É tudo o que sabe e gosta de fazer.
Há ‘‘mais ou menos 50 e poucos anos’’, explica, como que perdendo a conta.
‘‘Todo mundo na minha família era estivador. E tenho um filho que também é. O outro é militar’’.
A conversa é travada num dos terrenos das três do cais santista, termo para designar o local onde o trabalho é distribuído entre os cerca de 3.400 estivadores que ainda estão na ativa Guimarães incluído na lista. Orgulhoso, mostra a carteira com o número 8, indicando ter sido um dos primeiros no universo de milhares.
A parede, que começa dali a 15 minutos, fica nas proximidades do Armazém 11, no Paquetá, onde geralmente são oferecidos os trabalhos nos navios de açúcar.
A cada dois dias da semana os estivadores têm, obrigatoriamente, de mudar o ponto de escala, de tal forma que todos atuem nos diversos tipos de operação de contêineres, de granéis químicos, por exemplo do Porto de Santos.
Os trabalhadores começam a chegar, somente uma minoria vem de automóvel. A maioria tem moto, mais acessível ao bolso do estivador, acostumado com uma média salarial mensal boa.
‘‘O sonho de todo estivador é ter um carro’’, destaca o primeiro-secretário da Estiva, João B Soares.
Por ter sido chamado para trabalhar por um período de seis horas, o estivador recebe R$ 30,00, faça chuva ou faça sol. ‘‘Mesmo que quebre alguma coisa no navio que impeça o nosso trabalho, ganhamos os R$ 30,00’’, explicou Soares.
Caso haja um excedente de produção durante o trabalho, o ganho passa a ser correspondente à tonelagem embarcada. Vem daí o senso comum de que trabalhar com contêiner dá mais lucro. De fato.
Mas, a despeito disso, Soares explica que o trabalho no açúcar é um dos mais procurados por ser, nos dias atuais, um dos mais genuínos. É ali que se faz propriamente a estivagem arrumação da carga.
No caso do açúcar ensacado, são dois homens carregando a saca e acomodando-a no porão de um navio. Não raro, o açúcar escorre, um ou outro saco fura, a carga, exposta ao sol, se aquece e o cheiro toma conta do navio, podendo ser sentido mesmo por quem passa de carro ao largo da embarcação atracada, na via portuária.
Já com o contêiner o trabalho é mais impessoal, asséptico arrumam-se os cofres sem saber o que há dentro. A sensação é traduzida por Soares: ‘‘o açúcar tem aquele romantismo do porto de antigamente.
A essência da estivagem foi absorvida pelo mecanismo do contêiner’’.
Quando batem as 6h45 começa a distribuição dos trabalhos. A memorável cena em que os estivadores erguem os braços com a carteira de trabalho em riste, duelando entre si para ser o escolhido pelo mestre que também é um estivador, ainda permanece, enquadrada às devidas proporções.
Apesar da Lei de Modernização dos Portos 8.630/1993 implantar um rodízio, em que todos os trabalhadores avulsos são escalados o que não acontecia antes, daí o ‘‘duelo’’ , há hoje uma competição para participar do terno composto por 13 homens, no caso do açúcar supostamente mais forte ou onde haja mais amigos, indiretamente mantendo a antiga tradição.
A diferença fundamental, explica Soares, é que na época anterior à Lei, o mestre escolhia os trabalhadores. E hoje é ao contrário. Os trabalhadores é que se oferecem para atuar nesse ou naquele navio.
Feita a escala, os grupos seguem para a zona primária do cais, onde estão atracados os navios.
Em poucos minutos, o terreno onde a parede acabara de ser feita fica vazio. Mais um dia de trabalho está começando.
Trabalhadores debatem segurança a bordo
No porto, muita gente ainda lembra ou conhece a história do navio Ais Giorgis, que em 1974 explodiu e hoje tem seus restos afundados no estuário. Mas Soares tem uma lembrança especialmente particular do episódio.
Em 8 de janeiro daquele ano, então com 20 anos, Soares estivava a carga em um dos porões da embarcação de produtos químicos, que estava atracada no cais do Armazém 32 da margem direita Santos, quando um dos tambores explodiu.
O fogo se alastrou mas a notícia demorou a chegar ao local onde estava o primeiro-secretário da Estiva. Quando ele e os companheiros que estavam no porão descobriram, era tarde.
‘‘O navio estava em chamas e a escada estava obstruída. Tive de me jogar para o cais.
Foram cinco metros de altura. Um amigo se jogou no mar para se salvar’’, recordou. Um outro morreu.
‘‘Este era da Cipa das Docas’’, disse. Ele teria sido o último a tentar sair da embarcação.
A segurança sempre foi um tema controverso na história do porto. Ainda hoje, surpreende trabalhadores e as autoridades responsáveis pela fiscalização das embarcações.
Para o presidente da Estiva, Rodnei da Silva, a modernização do porto ocorreu só em relação aos equipamentos portuários. ‘‘Não houve investimento no homem. Para o estivador, não houve melhorias. Principalmente em relação à qualificação. Hoje temos uma lentidão muito grande na realização de cursos práticos de atualização. 90% deles são teóricos’’, revelou.
Em relação à segurança do trabalho é especialmente crítico. ‘‘A rigor, todo o navio que escala no porto tem de ser fiscalizado. Mas isso acontece mais quando fazemos alguma denúncia. Na maioria das vezes operamos em más condições’’, afirmou.
O estivador Givaldo França Matos, com 27 anos de profissão, sabe bem disso.
Na semana passada, a bordo de um açucareiro, criticava as condições da catarina peça do guindaste por onde passam os cabos, que, segundo ele, estava sem óleo e graxa. ‘‘Se isso solta, morremos todos nós aqui’’, afirmou.
Segundo a Marinha, uma das autoridades que têm de entrar a bordo para vistoriar os navios, são visitadas cerca de 15% a 20% das 30 embarcações que chegam a Santos diariamente.
Em relação à utilização do equipamento de segurança, o presidente do Sindicato afirma ser difícil para o trabalhador fazer uso dele uma vez que não há vestiário para o portuário se trocar.
Para um ‘‘marinheiro de primeira viagem’’, a chegada a um navio pode ser assustadora. Ainda mais se a embarcação estiver vazia, com os porões abertos, prestes a ter as mercadorias embarcadas.
Como é o caso de um açucareiro de grandes dimensões.
Os estivadores descem aos porões por uma escadaria dentro de um tubo. São cerca de 30 metros de altura contados a partir do convés do navio mais ou menos o equivalente a um prédio de três andares.
Lá embaixo, os trabalhadores de Bloco uma entre as diversas categorias que atuam no porto forram o chão com um papelão, preparando o piso para a chegada da carga. O trabalho portuário é todo feito em equipe.
Os estivadores entram em cena para manusear a lingada de açúcar várias sacas da mercadoria unidas por cabos suspensos pelo guindaste feita pelos trabalhadores de capatazia, uma espécie de ‘‘estivadores de terra’’.
‘‘Pô, Sidnei, 30 anos de cais e não aprende’’, grita Fábio, brincando com o companheiro, que não teria amarrado bem as sacas de açúcar para a suspensão do conjunto ainda no cais.
Reparação feita, a cena que se segue é digna de foto. A lingada é içada pelo operador de guindaste do lado de terra e lentamente deslocada para o lado de mar, descendo em seguida até o fundo do porão, onde estão os estivadores.
‘‘Isso aqui é fascinante. Quem bebe dessa água não esquece’’, explica Soares.
As roupas de trabalho são um capítulo à parte.
O que se observa hoje no porão difere em muito da ”moda” dos idos anos 30, quando, conforme pode ser atestado na galeria de fotos na sede do Sindicato da Estiva, o antológico Navalhada aparecia trajando terno, gravata borboleta e chapéu para trabalhar. Igual a ele, havia muitos.
‘‘Lógico que conforme a operação começava, eles iam tirando os apetrechos’’, explica Soares.
‘‘Mas o estivador era muito vaidoso, sim’’, completou. Pudera. Naquela época, a categoria era uma das que melhor recebiam no porto.
Hoje, relegando os equipamentos de proteção, os trabalhadores usam, via de regra, bermuda e camiseta. Quando o sol está a pino, apenas bermuda. Mas quando o calor sufoca, só cueca.
A Tribuna SP - 27/09/2005
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