22 de out. de 2012

Diario de Bordo II

30/04/98
Constato que preciso novo apoio do Sindicato, sem o qual posso esquecer este projeto de pesquisa.Casualmente, andando pelo Porto e conversando com Deus e o mundo,descubro um Diretor do Sindicato que se interessa muito pelo projeto! Ele começa a me acompanhar em algumas das minhas visitas aos navios e faz algo que me ajuda muito: nas "paredes" onde tira trabalho, ele me apresenta aos estivadores que lá estão. Isto produz resultados fantásticos.
O único empecilho é a própria caracteristica de instabilidade do trabalho portuário: só posso acompanhá-lo nas "paredes" onde ele já está escalado para tirar trabalho, e muitas destas "paredes" não têm navio, o que significa dias perdidos em Santos. Considerando que não moro em Santos,meu problema passa a ser outro: planejar as visitas a Santos exatamente nos dias em que há navios, exatamente naqueles pontos onde este Diretor esteja!
E tudo isto de modo a não coindicir com outros trabalhos já programados para a Fundacentro. Dureza coincidir tudo isto.
5/98

Reuniões com os outros integrantes do projeto para discutir meios de superar estas dificuldades. Não vemos muitas saídas, se não trabalhar com a casualidade e o eventual, lançando mão das bases de apoio que já temos junto ao Sindicato e o próprio fato de já ter conseguido um entrosamento inicial com os trabalhadores.
06/98 a 09/98

Novo período de desligamento temporário do Projeto, pois tenho outras atividades da Fundacentro em curso, que ficaram esquecidas.

05/10/98

Mais experiente, volto ao Porto com um outro esquema traçado: acompanhar o roteiro de uma mesma turma, onde quer que estejam, tendo ou não navio naqueles pontos, para que seja criada uma relação fortalecida entre os trabalhadores desta turma e eu. Resolvo acompanhar a turma 2.
 Traço todo o roteiro desta turma, verifico quem são os diretores que a acompanharão em todos os períodos, durante dois meses, e faço contato com cada um deles (um dia antes) para me certificar que poderão me acompanhar nos navios durante a jornada de trabalho dos períodos designados.
 Verifico, nas 6 1wras anteriores às datas marcadas, quais os pontos daquela turma onde
não haverá navios, para que a ida ao Porto também não seja perdida.
E seja o que Deus quiser, sabendo que o acaso me traria novas surpresas! Se o esquema não obtém os resultados esperados, ao menos começo a ficar conhecida na área portuária e conheço cada ponto da estiva, como se estivesse na minha casa!!!
07/10/98

Mais uma entrevista para a TV Santa Cecília, falando dos resultados parciais do projeto. Passo a ter intimidade com Santos... Transito lá com facilidade!
Ouço a rádio Cacique para saber se haverá trabalho no 40 Vante e, para minha surpresa, ouço o Jorge Fernandes anunciar para todos os ouvintes:
"Amarilis, atenção, não haverá navio no 40 Vante amanhã." No dia seguinte, outro recadinho para mim: "Amarilis, haverá trabalho no 40 Vante." Fico emocionada...
08/10/98

Mais entrevistas informais. Entrevista também com um representante do OGMO. Pesquisando outros olhares...
09/10/98

Na parede, resolvo levar um papel e registrar os apelidos de quem espontaneamente se aproxima de mim. Todos se chegam, começam a denunciar os apelidos dos outros sem falar os próprios: "Apelido cabeludo não dá para falar!" Riem e brincam muito uns com os outros e comigo!
20/10/98

Os estivadores me conhecem! Já me avisam que no 12 vão tirar 7 ternos no dia seguinte. Não se incomodam mais com a minha presença. Alguns até me ajudam.
Acompanhamento da estivagem de granel. Fico surpresa quando me dou conta de que os estivadores sabem exatamente quantas vezes o "grab" desceu!!! Não perdem nada...
Encontro um grupo de estivadores e digo a eles que gostaria de subir no portainer. Mas na hora de subir naquele elevador, como tenho medo de altura, perco a coragem. Mas um estivador diz que me segura.
 Fico com medo! E se ele resolver brincar lá em cima comigo, como fazem lá embaixo???
O elevador começa a subir e balança como se fosse cair!
Agarro o estivador e peço pelo amor de Deus para ele não me soltar. Lá em
cima, ele morre de rir enquanto eu suo que nem o diabo... mas ele não me larga!
 Diz que na próxima vez devo tentar a gaiolinha...
21/10/98

Estou no açúcar, lingada. Ouço o operador do pau de carga gritar para os estivadores lá embaixo:
 "O mestre tá querendo pagar o BNH. Tem que dar um jeito!"
"Te escolheram! Tá fazendo o trabalho errado!" "Boneca!"
Já sei que o trabalho no açúcar é fogo!Ship-Ioader! O pessoal sua feio!
 Em Santos faz um calor tremendo! Desço até o porão para acompanhar o trabalho de perto! Me assusta um pouco ficar lá embaixo. Não sei, dá medo...
Primeira exposição de fotos no Sindicato. O pessoal comenta...
22/10/98

Estou em Santos voltando do cais. Alguém de bicicleta buzina pra mim e me faz sinal que nem louco na rua! Quando vou ver, reconheço um estivador do cais que me conhecia e que me pergunta:
"Perdeu a Hora Hoje? Ficou dormindo? Não te vi no ponto!" É um dos momentos mais felizes daquele trabalho...
Começo a arregimentar estivadores para as entrevistas longas da pesquisa.O acaso é que determina esta escolha: quem eu encontro nas minhas idas ao cais, quem conversa comigo, quem tem tempo naquele momento, quem aceita dar entrevista... E as entrevistas vão acontecendo, embora com tantas dificuldades!
Um dos matriculados só aceita dar entrevista após pedir autorização ao Sindicato!
"Hierarquia aqui tem que obedecer!", me diz o matriculado.
Respondo logo: "Então, vamos obedecê-la. A quem você deve pedir?"
"Levanta aí que a mulher vai tirar foto!", grita o estivador que me acompanha para um trabalhndor que dorme no navio...
23/10/98

Na parede do 12, ouço mais palavrões do que já ouvi em toda minha vida!
Ninguém quer pegar o porão 2!!! Xingam muito...
 Resolvo descer no porão 2! Barrote! De repente, vsilumbro a maior briga e me assusto muito, pois
no meio daqueles sacos todos, não tinha nem para onde escapar! Mas nada acontece comigo...
24/10/98

Desço de novo ao porão. Trabalho  do açúcar. O dia está muito quente em Santos. Minha pressão começa a descer. Peço água. Não tem. Os  estivadores pedem para alguém descer água para mim, e pedem que mandem também um copo.... A garrafinha de água desce pela corrente,amarrada a um copo descartável.
 O estivador me explica que posso usar o copo sem medo, pois tomaram água no mesmo copo apenas uns 15! Os trabalhadores estão molhados de suor. Tomo aquela água quente para não morrer...
04/11/98

Dia do meu aniversário. No cais, porão 3 ...
05/ 11/98

Estou na Fundacentro com um dos estivadores que acabou aceitando fornecer a entrevista. Está impaciente, quer sair logo. Mas pouco a pouco,vai se interessando e quando nos damos conta, está completamente à vontade e nem quer mais ir embora. Adorou fazer a entrevista!
Começo a ficar emocionada com as entrevistas quando os estivadores, ao falar da estiva, ficam com a voz embargada...

Projeto de pesquisa intitulado
"Representações de trabalho:um estudo dos estivadores de Santos", integrante do PROPOMAR - Programa Nacional de Pesquisa sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores Portuários e Marítimos.
Projeto realizado pela Fundacentro no período de junho de 1997 a novembro de 1999



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