22 de out. de 2012

Diario de Bordo III

16/11/98
Durante uma entrevista, mostro as fotos que tirei dos trabalhadores para o estivador com quem falo. Ele vai apontando cada um e falando:
 "Este é maconheiro!" "Este é gente fina!" "Olha aqui como é pesado este trabalho!"
"Puxa, você desceu lá?" Vamos revendo juntos aquela história...

17/11/98
Gosto de Santos. Percebo que gosto do Porto. Vou ao 35 e, ao andar pelo cais, dentro dos navios alguns estivadores me chamam para me cumprimentar. Vou tomar café com alguns deles no bar do 12.Como não tenho ninguém do Sindicato para me acompanhar, resolvo ir sozinha ao cais.Alguém no Armazém 15 me chama e pergunta porque estou só.
Quando digo que não tinha ninguém para me acompanhar naquele dia,ele me responde:
"A senhora não precisa. Ninguém vai bolir, porque todo mundo já conhece a senhora!
" E é um pouco esta a sensação que tenho...
Mas quando estou só, tenho que mostrar minha credencial para todo mundo e às vezes o vigia do navio não me deixa entrar. E é exatamente neste dia que começo a ter meus primeiros problemas para tirar fotos. 'Alguém' telefona para 'alguém' que telefona para outro 'alguém' que dá uma ordem para 'alguém' para que eu desça do navio imediatamente, se não me apreendem a câmera. A partir de então, só poderei tirar fotos com autorização não sei de quem. Bem, terei que ir atrás do 'preju '...
Se as paredes das "paredes" falassem, quanta história teriam a contar sobre a estiva!
Aquilo é o registro antropológico dos estivadores!
Tudo que se faz ou se conversa lá retrata o modo de constituição das relações que os estivadores mantêm entre si e com o Porto! Que coisa mais rica estas "paredes"...
Quando desço ao porão 3 e 4 para fotografar o ship-Ioader, o mestre pede aos trabalhadores que vistam a roupa. Todos se vestem rapidamente.
Mulher no Porto é raro, e dentro dos porões, quase nunca! Um deles me Vê e diz que me viu na TV, dando entrevista.Outro diz saber que entrevistei o XXX na Fundacentro.
Quando digo que eles são muito fofoqueiros, riem muito. Perguntam-me se já subi no poriainer.Quando os desafio dizendo que sim, pedem que eu suba na 'gaiolinha'.
 Dou uma bronca neles e os desafio, rindo:"Espera aí, eu já tenho os problemas do meu trabalho! Ainda querem me dar o de vocês?!" Confiança...
Quando estou subindo para o convés, um deles me convida para assistir o pagode à noite, pois ele toca em um grupo. Agradeço, mas digo que não posso, pois volto para Sampa à noite!

18/11/98
Quando percebo que é difícil os entrevistados irem até a Fundacentro para realizarem as entrevistas, tento entrevistá-los em qualquer beco do cais onde se possa sentar. E é assim que inicio uma entrevista com um deles.
Mas é um problema! O ruído é enorme e a desconcentração é total! Temos que mudar de lugar a cada 15 minutos, por causa do barulho dos caminhões. Mas começo a perceber que todos eles acabam gostando de dar a entrevista e aqueles momentos, ainda que tão difíceis, se tornam maravilhosos, até porque foram tão dificeis de serem obtidos.
Tento a todo custo convencer um trabalhador a dar uma entrevista para mim, já que ele está na parede do 29, não havia conseguido trabalho e iria ficar por lá mesmo.
 Após muita insistência e estímulo de um dos diretores do Sindicato que me conhecia, acaba aceitando!No final da entrevista, fica sentado lá no cais conversando comigo. E na hora de ir embora, me dá a mão dizendo:
"Vê se aparece aí de vem em quando!"

19/11/98
Nestas alturas dos acontecimentos, já saio sozinha com meu carro e vou para o cais tentar encontrar alguém conhecido que possa ser meu cicerone.E sempre acabo encontrando alguém conhecido que me ajuda...
Vou ao OOMO e recebo uma autorização para fotografar apenas quando estiver acompanhada de alguém deste órgão. Mas se as situações interessantes de serem fotografadas são imprevisíveis, como conseguir que alguém do OGMO estivesse todos os dias à minha disposição? Bem, sem palavras.... fui rever minhas fotos para ver se já tinha fotografado o essencial até aquele momento.

20/11/98
Começa a chover quando chego no cais. Penso que o Diretor do Sindicato que me acompanha vai esperar a chuva passar. Mas para minha surpresa, ele nem se incomoda. Nuo dá para esperar a chuva passar... aquilo tudo é muito imprevisível! Vou ao navio com chuva e tudo!Encontro um estivador que não pegou trabalho e diz que pode fazer a entrevista. Ficamos 40 minutos para conseguir arranjar um lugar para se sentar e poder fazer a entrevista. Conseguimos localizar uma antiga caixa de conferentes que não é usada há anos e lá ficamos. Ao final, a oferta dele:"Vamos no bar tomar um café?" 
Quando digo que não tenho um centavo na bolsa, ele diz:
"Puxa, se o estivador não tem dinheiro nem para pagar um café?!" O melhor café do mundo...
"Tira a mão do meu bolso!" Vocês sabem o que significa um estivador falar isto para o outro? Eu sei...
Vou ao ponto do cais onde estão estivando containers. Entrevisto caminhoneiros, conferentes, representantes dos terminais retroportuários e dos operadores portuários. Um barulho infernal, como nunca vi na minha vida. Começo a perder a voz, pois sou obrigada a gritar para poder conversar com eles. E começo a ter uma dor de cabeça fortíssima! Gravo tudo, para não perder nenhum instante daqueles...
Pergunto a um representante dos operadores portuários o que estes profissionais pensam dos estivadores: "Tem que gritar com eles, que nem se grita com caminhoneiros. Eles gostam de receber ordens!" Pergunto a ele se ele gosta de receber ordens, mas não obtenho resposta...

17/12/98
Por telefone, marco hora com dois estivadores na Fundacentro. Mas, como sempre, fico com um pé atrás, contando com os habituais cancelamentos.Mas, para minha surpresa, na hora marcada, os dois vêm à Fundacentro! E ficam comigo um bom tempo! E, na última entrevista, um deles chora na minha frente ao falar da história da estiva. E eu também...
Mas os estivadores... o que pensam? O que sentem?
Aqui começam as suas verdades, tão plurais, efêmeras e relativas quanto as minhas, plenas das representações que afetam, em profundidade, a sociedade. A sua dinâmica particular, descrita anteriormente em seus aspectos históricos, sociais e politicos, ressurge em cada recorte destas
falas, mostrando novas iluminações sobre os contornos apontados nos capítulos iniciais e trazendo novas perspectivas de compreensão do seu mundo.
As falas não foram alteradas, procurando-se, dentro do possível,transcrevê-las exatamente como foram expressas durante as entrevistas. E para que não fiquem esparsas e jogadas no texto, tentamos agrupá-las segundo alguns temas considerados emergentes na compreensão desta categoria.

Projeto de pesquisa intitulado
"Representações de trabalho:um estudo dos estivadores de Santos", integrante
do PROPOMAR - Programa Nacional de Pesquisa sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores Portuários e Marítimos.
Projeto realizado pela Fundacentro no período de junho de 1997 a novembro de 1999



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