A preferência na contratação da mão-de-obra sempre foi dada aos operários sindicalizados,ocasionando uma segregação, que acabou agravando o problema de excesso de contingente de reserva no porto. Não obstante haver teoricamente uma regulamentação para a tomada de trabalho, a discriminação, entretanto, ocorria na prática.
Quando havia trabalhos bons, os sindicalizados compareciam ao ponto e dividiam entre si e membros do sindicato, as parcelas de uma jornada lucrativa. No caso das mercadorias a granel, a disputa era menos acirrada e maior era o número de homens necessários, permitindo a participação maior de trabalhadores não sindicalizados.
A função empregadora do sindicato era legitimada pela preferência conferida aos estivadores pela própria legislação, que fez do matriculado um estivador constantemente em potencial, que só seria utilizado para atividades pouco remuneradas. Neste quadro acha-se a raiz do termo "bagrinho", designando aquele que se alimenta dos restos do "tubarão".
A regulamentação do mercado de trabalho apoiou-se em uma diferenciação intrínseca à atividade estivadora, a qual foi ratificada pelo sistema de remuneração. Esta diferenciação ofereceu condições para a emergência da questão dos "bagrinhos". Tratou-se de um conflito estrutural,responsabilizado por uma legislação corporativista do trabalho, que não SÓ atribuiu ao sindicato o controle do mercado de trabalho, como também criou uma situação de desigualdade social em que matriculados eram colocados de fonna ilegítima no mercado e obrigados a disputar o trabalho com os sindicalizados de forma perversa.
É interessante que ao introduzir a figura do contramestre e do fiscal, a legislação fortaleceu uma hierarquia que vinha ao encontro dos interesses do capital, pois reforçava um padrão de relações sociais anti-democrático no seio da corporação. A função de contra-mestre geral era entendida como "um elo de ligação" entre as autoridades de bordo e o corpo de trabalhadores: a ele cabia a responsabilidade de execução do serviço estivador na chefia dos "contramestres de porão", que por sua vez estavam à frente de cada "terno". Note-se que este tipo de sindicato que inclui o contramestre em seu quadro de associados ao lado de outros membros operários a ele submetidos nas relações de trabalho ironicamente contrasta com a estrutura idealizada em principias da atividade sindical no Brasil, que considerava os mestres e contramestres espiões em potencial, por serem representantes do patrão.
Neste caso, a legislação corporativista institucionalizou a corporação estivadora, garantindo a manutenção de uma casta de privilegiados entre os operários. Também foi contemplado neste favoritismo o posto de "fiscal", equivalente ao de contramestre. O posto de Diretor encontrava-se acima de todos.
Progressivamente, este quadro foi sendo alterado pelas constantes reivindicações do Sindicato dos Estivadores de Santos, que preconizavam que o trabalho coubesse equitativamente a todos os operários sindicalizados. Primeiro foi implementado o rodizio de contramestres e fiscais como esquema democrático de divisão do trabalho: todo operário passou a ser escalado por ordem numérica para o cargo de contramestre por um espaço de tempo limitado e igual para todos. Por último, não sem muita luta contra os empregadores, o SES conseguiu que os contramestres gerais fossem também escalados em sistema de rodízio.
Tais conquistas modificaram a essência corporativa do Sindicato, no sentido de torná-la uma organização mais democrática. De 1964 a 1987, o Porto passou por significativas transformações qualitativas e quantitativas. O chamado perfil de movimentação de carga em Santos se alterou profundamente no período de 23 anos, atingindo as relações de trabalho, a ocupação do pessoal e seus ganhos. Várias conquistas dos trabalhadores foram canceladas em seguida ao golpe militar. E neste período pós 64, a história dos estivadores foi ilustrada por uma longa lista de perdas, que incluiu até mesmo o direito exclusivo de realizar o serviço de estivagem e desestivagem, que sempre deftniu a identidade estivadora. A estivagem foi a última das operações portuárias a serem controladas pela Cia. Docas de Santos, e assim mesmo, apenas
parcialmente.
As reivindicações obtidas através de anos de organização e luta caíram no esquecimento. Em 15 anos, apenas 3 dos itens perdidos foram recuperados. O poder aquisitivo dos portuários decresceu muito, o que fez com que muitos doqueiros fossem tentar trabalho fora do porto, muitas vezes sem sucesso, pela falta de conhecimento de outros ramos de atividade. Com os sindicatos sob intervenção, as reivindicações quase passaram a inexistir, fazendo do porto um local com poucos atrativos. A imagem dos estivadores sempre foi confundida com a de "bandidos ou vagabundos", uma vez que seu trabalho é pesado e instável e esta categoria caracterizou-se sempre por sua intensa mobilidade ao longo de anos de lutas por melhores condições de trabalho. Mas no caso de Santos,estes trabalhadores alteraram esta imagem à medida em que souberam tirar proveito de sua importante posição na economia.
A prosperidade da ftgura do estivador foi trazida pela via Anchieta,responsável pela oxigenação dos pulmões do porto. Os trabalhadores da estiva tiveram uma presença marcante em 1945 como em todo período democrático. Constituíam a aristocracia operária, pois encontravam-se em ascensão em relação aos ganhos nominaís, além de constituírem a vanguarda do movimento sindical santista da época.
Qual era a grande ambição de um jovem santista ali pelos idos da década de 40, em termos profissionais? Ser estivadorl Havia, naquela época, muito do espírito das sociedades medievais em que os pais passavam para os filhos as suas profissões os pais passaram para os seus filhos o gosto pela estiva.
A carteirinha da estiva era a melhor carta de apresentação de alguém.Qualquer profissional de curso superior dava passagem ao estivador, que tinha então um alto poder aquisitivo. Algumas matérias, publicadas em revistas famosas na época, chamavam seus trabalhadores de "marajás".
Mas não podemos nos esquecer que muitas destas melhorias salariaís do inicio da década de 60 na verdade correspondiam a horas extraordinárias trabalhadas em excesso e não propriamente aos ganhos básicos.
E devemos também levar em conta que por trás deste padrão encontra-se um processo de lutas e reivindicações. Os estivadores enfrentavam os setores mais poderosos da economia nacional com intensa repressão e,com isso, ganhavam a simpatia da opinião pública. Tinham uma experiência vívida da competição do mercado de trabalho, através das "paredes", além de que as tarefas do estivador exigiam força fisica,habilidade e destreza, o que os tornava insubstituíveis.
Produziram, em Santos, um movimento anarco-sindical que os sustentou, pois foi a linguagem política que serviu de base para que eles pensassem suas experiências de vida.As duras experiências de vida e trabalho serviam bem para a idéia de comunidade mundial dos explorados. Os grevistas eram respeitados por sua coragem e capacidade de resistência, demonstrada pelos chefes de família, que com suas colunas arcadas e pulmões corroídos, cedo eram substituídos pelos filhos, num ritmo de produção peculiar às famílias portuárias. Sonhar com uma sociedade mais justa para os filhos ou para os netos, tanto quanto o apelo simbólico de aspectos culturais, podem ter oferecido compensação para as árduas rotinas das suas vidas.
Durante as greves portuárias, quando Santos era virtualmente "invadida", os estivadores, junto com outros trabalhadores portuários, podiam contar com uma opinião pública indignada, raramente presente em outras cidades brasileiras da época.
De acordo com Gitahy (1992), a "fraqueza deste grupo, aliada à força e intransigência do oponente, explica os reduzidos ganhos materiais do grupo de trabalhadores do Porto. Porém, sua capacidade de continuar na luta e seu inspirador exemplo de coragem e solidariedade deram à luz uma tradição única, que perdurou por um século."
Projeto de pesquisa intitulado "Representações de trabalho:um estudo dos estivadores de Santos", integrante do PROPOMAR - Programa Nacional de Pesquisa sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores Portuários e Marítimos.
Projeto realizado pela Fundacentro no período de junho de 1997 a novembro de 1999
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