20 de dez. de 2013

A Saúde do Homem do Cais

A influência de gênero nas representações de ser homem 
e sobre os processos de saúde-adoecimento 

Tradicionalmente na sociedade ocidental a masculinidade  se constitui tendo como um dos principais pilares o trabalho. Historicamente, o trabalho, fosse ele camponês ou industrial, envolvia o corpo masculino, que se distinguia do feminino pela força física .
 A questão que se coloca, no contexto da pesquisa  com trabalhadores do setor portuário de Santos é : como, no final do século XX e início do século XXI este paradigma do valor do trabalho masculino é atualizado? 
Quais as implicações que as mudanças no mundo do trabalho  trazem para as representações de saúde, adoecimento e cuidado?

A concepção de homem, na visão dos trabalhadores portuários, é fortemente calcada no modelo ocidental  hegemônico de masculinidade, ou seja, ser homem é, acima de tudo, ser trabalhador, forte, ativo e saudável. O universo do trabalho, portanto, se confunde com o ambiente portuário. Isto, sem dúvida, guarda relação com a longa permanência destes homens ‘na ativa ’ no setor e, também, pela característica de uma identidade de homem-trabalhador historicamente criada na referência aos familiares, amigos,  companheiros de sindicato que atuam neste meio.

 Nesse contexto, estar apto para trabalhar e ter a capacidade e a habilidade necessárias ao exercício do trabalho configura a condição que lhes permite assumir o “lugar social” de trabalhador portuário e ser reconhecido como tal.   Decorre disto que a representação de saúde está intrinsecamente relacionada  ao trabalho, ou seja, saúde é estar bem é estar apto a trabalhar e a doença se caracteriza como um impedimento ao trabalho.
 A ideia de um indivíduo saudável está ligada à força, à agilidade, à disposição e à capacidade de concentração, habilidades tidas como essenciais para a realização
 desse tipo de trabalho. 

“É difícil eu ficar doente, tenho saúde!” (André, Estivador).
 Eu nunca tenho nada, o homem é forte!” 
(José, técnico de manutenção de máquinas).
 “O homem tem um físico mais desenvolvido, fica menos doente” (Marcos, estivador).

 As falas revelam a percepção de invulnerabilidade dos homens, mas, também, a forma com que encaram a doença. Estar doente é sinônimo de fraqueza e submissão e, consequentemente, traz o fantasma da desvalorização e exclusão do grupo de pertencimento. Por encarar a doença como um desvio social, muitos trabalhadores portuários camuflam suas dores e negam ou resistem o quanto podem à possibilidade de poder adoecer.

 Diferentes estudos que abordam as concepções dos homens e a relação que estabelecem entre saúde-adoecimento-cuidado  confirmam tais achados. E porque o trabalho tem eficácia simbólica para garantir as atribuições sociais constitutivas da identidade masculina, o conflito de identidade se instaura quando no exercício do trabalho o homem adoece ou sofre acidentes.
 Tais situações determinam uma série de limitações morais e físicas, que colocam em jogo os atributos de ser homem e trabalhador.
Neste sentido, devemos diferenciar a atitude pessoal-subjetiva do trabalhador diante da doença e a referência social negativa que o adoecimento implica no contexto do trabalho portuário. Enquanto no plano individual da experiência da doença-sofrimento alguns trabalhadores se colocam como preocupados em manter a saúde e vulneráveis aos riscos de acidentes decorrentes do trabalho.

  “Eu me preocupo com a saúde, eu quero saber o que vai ser embarcado aqui, se é produto perigoso fico longe...” (Edílson, trabalhador de bloco).


No plano social, traduzido pelos discursos valorativos sobre ser homem e trabalhador,
 sobressai a necessidade de afirmação dos atributos culturalmente associados ao trabalho portuário e a defesa do cumprimento dos mesmos. Embora possamos creditar à pressão social que exige dos homens o cumprimento destes atributos força, virilidade, coragem, invulnerabilidade, processo que engendra a ideia de que a saúde não faz parte do repertório de identificação masculino, a pesquisa com os trabalhadores portuários apontou a existência de preocupações acerca do cuidado visando à manutenção da saúde, especialmente quanto ao vigor físico e força
Referências à alimentação e ao sono foram recorrentes. Justa posta à referência da necessidade de uma boa alimentação  há o reconhecimento que está nem sempre é possível em razão de serem poucas e precárias  as opções de alimentação na zona do Porto. 
Seja porque na área do costado, restrita ao embarque e desembarque das mercadorias,
 o comércio de bebidas/alimentos é proibido, ou porque nas proximidades, onde se encontram as ruas e avenidas com grande movimentação de pessoas e caminhões,
não existem locais apropriados para as refeições, mas, apenas pequenas barracas improvisadas nas quais o que é vendido têm baixo valor nutricional e qualidade duvidosa. 

“A nossa alimentação, eu acho que é a mais inadequada possível, porque a gente vive de lanche na rua, no carrinho, coisas rápidas.” (Anderson, estivador).

 O mesmo se deu quanto ao sono. A irregularidade e a privação do sono
 em razão do trabalho ser exercido, muitas vezes, em turnos diferentes  e em ocorrência de duplas jornadas de trabalho, ou seja, trabalharem 12 horas seguidas sem intervalo.  

“Quando eu faço seis horas, já dói a coluna ou então,
 quando a gente faz 12 direto, tem vez que no outro dia a gente nem aparece, porque não é brincadeira tu movimentar 100, cento e poucos contêineres...”(Luciano, operador de máquinas).

 “Saúde, saúde mesmo 100%, você trabalhando no porto há tanto tempo, ninguém tem... a gente sabe que, com o passar do tempo, noites mal-dormidas, produtos químicos, o próprio pó, te fazem mal.” (Alberto, capataz).

 Houve menções, também, quanto aos riscos à saúde, decorrentes das condições ambientais na área portuária, referente à zona do costado e no porão dos navios . 
Assim, a preocupação com a ocorrência de dengue, tuberculose e também quanto ao desconhecimento relativo a determinadas cargas embarcadas e desembarcadas ou
 de possíveis doenças advindas de navios estrangeiros foi apontada pelos trabalhadores.

 “Vem navio de tudo quanto é lugar do mundo e às vezes tem doença, gripe aviária, gripe não sei o que das quantas...” (Edilson, trabalhador de bloco).

 “Tem muitos navios contaminados, inclusive com ratos.” (Anderson, estivador).  

Analisamos a relação  entre o exercício do trabalho e o processo de saúde/adoecimento a partir da perspectiva do ethos masculino. Este ethos impõe uma negação da necessidade de cuidados na medida em que no imaginário destes trabalhadores sobressai a concepção de que afastar- se por doença ou  acidente de trabalho os colocaria num lugar marginal, com risco da perda do trabalho. Neste sentido, ao tomarmos a dimensão do cuidado em saúde, a questão não passa apenas pelo cuidado em si, quando um determinado problema se manifesta, mas, antes, pela própria referência de estar doente. 
Os homens, por não poderem demonstrar qualquer sinal de fragilidade, acabam criando as condições para que determinados problemas de saúde possam se manifestar ou se agravar.
 No tocante ao cuidado em saúde, as falas dos entrevistados apontaram para o sentido relacional de gênero. 
Ou seja, tomaram a referência da mãe, a esposa e as diferenças de gênero nas atribuições nos domínios público (trabalho) e privado (casa) para a construção da ideia de cuidado e 
o seu exercício no cotidiano da família. Para eles, a mulher é mais preocupada com a saúde do que o homem, pois ela consegue dividir mais a atenção nos diversos papéis sociais que exerce: mãe, dona de casa e trabalhadora; já a atenção do homem ainda está fortemente ligada ao trabalho.
 Além disso, acreditam que esse maior cuidado faz parte da ‘natureza’ das mulheres.
Alguns entrevistados relatam que os homens se preocupam mais com o “remediar” (curar)
 enquanto que as mulheres com o “cuidar” (prevenir). 

Os homens geralmente estão sempre trabalhando, não têm tempo de cuidar da saúde” (Leopoldo, operador de máquinas).

 “A vida fica tão vinculada ao trabalho que você acaba não cuidando de você mesmo” (Alberto, capataz).   

“O homem é muito desleixado.”
 (José, técnico de manutenção de máquinas). 

“A mulher cuida mais da saúde do que o homem, pois tem mais tempo para se cuidar, vai sempre ao ginecologista, faz limpeza de pele, vai ao salão de beleza, gosta de estar sempre bem, se arrumar melhor; o homem está sempre de qualquer jeito, não liga tanto para isso quanto as mulheres” (Josias, estivador).  

Alguns  demonstraram consciência de que o homem deveria cuidar da saúde tanto quanto as mulheres, mas para isso precisariam de mais tempo livre e menos trabalho.

“A mulher cuida mais da saúde porque tem tempo para isso, os homens estão sempre trabalhando, não têm tempo; somos os últimos a pensar em nós mesmos, o homem trabalha, trabalha... a gente costuma pensar primeiro na família, na mulher, nas crianças”
(Clemente, conferente). 

Levando-se em consideração a concepção de saúde dos trabalhadores portuários
são poucas as situações que os fazem procurar atendimento médico ou de outro profissional de saúde. 
As marcas da masculinidade socialmente instituídaem valores como virilidade, invulnerabilidade e força podem aprisionar os homens  a amarras culturais dificultando, inclusive, a procura pelo serviço de saúde. Assim, grande parcela dos entrevistados referiu a procura por serviços de saúde apenas em caso de enfermidades graves e acidentes ou, como dizem eles próprios, quando “ ficam de cama ”. Quando são acometidos por uma “ enfermidade normal” (gripe, dor de cabeça e outras dores) geralmente recorrem à farmácia ou aos remédios caseiros (especialmente chás).
 Uma parte menor dos entrevistados relatou a procura por serviço de saúde quando percebe que algo está errado (por exemplo, dor no peito, mal-estar e indisposição). 
Alguns trabalhadores, ainda, disseram fazer vários exames por conta própria, cuidar da alimentação e do sono e praticar atividades físicas como medidas de prevenção.

  “É a prevenção, acho que é por aí, evitar a doença” 
(Anderson, estivador).      
FONTE Ethos masculino, trabalho e cuidado à saúde entre portuários de Santos/SP  
Rosana Machin , Márcia Thereza Couto,   

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