19 de dez. de 2013

O Olhar da lingada

Relação Trabalho e Saúde

A característica de serem trabalhadores portuários há bastante tempo e , devido a isto,
 a vivência de importante transformação histórica, econômica e política, conformam as representações sobre a relação entre trabalho e saúde-adoecimento. 
A constante alternância entre valores e práticas novas/modernas e antigas/tradicionais dá sentido à experiência dos trabalhadoresTomando o aspecto do esforço físico, tido como inerente ao trabalho portuário por eles mesmos e pelo senso comum, vê-se a diminuição da exigência deste para a realização do trabalho o que, para muitos entrevistados, se explica pela modernização dos equipamentos e alteração substantiva nos processos de trabalho com a crescente inserção de tecnologia no manejo das cargas, fazendo com que realizem menos esforços. Em aparente desacordo com este argumento, os entrevistados lembram que  estivadores e doqueiros precisam de melhor preparo físico já que o manuseio de mercadorias como o açúcar, batata e arroz exigem esforço considerável na organização dos produtos nos navios e/ou caminhões. 

  “Se você não tiver uma estrutura, tanto física quanto psicológica, você não aguenta o trampo e, mesmo tendo, é difícil.” (Alberto, capataz).

 “Costumo dormir bem, mas hoje eu não dormi porque eu trabalhei de madrugada... às vezes a gente não dorme muito bem porque você pega trabalho assim, de uma forma inesperada.” (Clemente, conferente).

 “Ficar fraco, com sono, não é bom, pode interferir no meu trabalho. Não tem como regular o sono, tudo depende da hora que eu vou trabalhar, se eu trabalho de madrugada, eu durmo durante o dia, mas não é a mesma coisa do que a noite.” (Gilvan, operador de máquinas). 

Os trabalhadores portuários referem, particularmente, problemas com relação ao sono
 em razão de jornadas alternadas e duplas de trabalho. Além disto, relatam que o trabalho que realizam é muito desgastante, pois exige grande concentração, força, atenção, preocupação com a tarefa, com o ambiente e, principalmente, com os demais membros da equipe. 
Nesse sentido, há menção a desintegração do grupo de trabalho tradicional indicando mudanças na composição das equipes de trabalho. Referem insegurança, muitas vezes, pois não conhecem os integrantes da equipe com os quais estão escalados, o que pode comprometer um trabalho coletivo ocasionando acidentes. 

“As pessoas geralmente te estressam, é uma coisa interpessoal, o estresse é mais pelas pessoas do que pelo serviço” (Marcos, estivador).

 “É difícil criar vínculos porque a equipe não é sempre a mesma” (André, estivador). 

Esse fato retrata as mudanças operadas pela  modernização dos Portos ao realizar o desmonte da atuação sindical  retirando seu poder de organizar a escala do trabalho. 
As atividades portuárias são executadas por ternos que variam conforme  a tonelagem, tipo de carga e condições operacionais dos navios. A composição das equipes de trabalho varia  em razão da escalação realizada pelo OGMO, considerando o número da matrícula do trabalhador e o último dia trabalhado.  Anteriormente, era um trabalhador da categoria que montava as equipes de trabalho. Na avaliação dos trabalhadores o OGMO conhece o trabalho portuário  de forma superficial. Sobressai a visão do trabalho como segredo de ofício passado as gerações como fonte de orgulho e elemento de construção da identidade que está sendo transformado. Ademais, a legislação propõe a multifuncionalidade dos trabalhadores portuários avulsos poderem realizar as tarefas de distintas categorias praticamente acabando  com as diferentes categorias profissionais que atuam no Porto 
Os trabalhadores referem considerável desgaste mental no trabalho  em razão das condições precárias em que se encontram muitos navios, máquinas e equipamentos. 
Esta situação exige muita concentração e é encarada como parte integrante do trabalho
 conformando uma visão de sofrimento inerente a sua dinâmica coletiva.

 Destacam-se escadas escorregadias, pisos irregulares nos convés e porões dos navios, 
riscos de lesões produzidas por guinchos, cargas suspensas e cabos de aço, equipamentos com componentes danificados ou improvisados.A esse contexto somam-se as características e riscos  deste campo de trabalho identificado pela insalubridade, ruído excessivo, presença de poeira e gases,  luminosidade deficientecomo também, o risco relativo à característica específica das operações com produtos químicos e siderúrgicos dentre outros realizados no Porto.

 “É um trabalho meio estressante, o barulho, a sujeira, poeira de caminhão...” (Aurélio, estivador).

  “O calor é muito, já vi cara desmaiar lá dentro.”
 (Edilson, trabalhador de bloco).

  Outro aspecto mencionado pelos trabalhadores na perspectiva do desgaste mental 
são as pressões durante a execução das tarefas, principalmente por parte das empresas em que prestam serviços para , por exemplo, embarque e desembarque de mercadorias antes da liberação da fiscalização. Estes elementos reforçam achados sobre o trabalho portuário, riscos e acidentes de trabalho e sua relação  com as mudanças na organização do trabalho decorrentes da implantação da Lei 8.630/93Indica um aumento de acidentes de trabalho no Espírito Santo em razão do processo de modernização portuária: modificações na organização do trabalho, aumento da produtividade, diminuição do tamanho das equipes de trabalho e  mudanças no nível de comando.   

Ademais, a compreensão do trabalho portuário como uma atividade masculina, por excelência, a exigir força física, virilidade e coragem pode ser importante elemento a conformar atitudes dos trabalhadores de assumir riscos e desafios além de suas capacidades físico-psíquicas colaborando com a ocorrência de acidentes de trabalho e adoecimento.  Quando o assunto é a satisfação e o envolvimento com o trabalho 
sobressaem elementos característicos da atividade pautados numa identidade estabelecida tendo por referência  o domínio do mercado de trabalho, noção de pertencimento profissional vinculado ao ofício e  não submissão a regras disciplinares existentes em contextos fabris ou de trabalho regular formalizado.


Assim, destacam a inexistência de rotina (grande diversidade de cargas), liberdade no exercício do trabalho  (para saírem de férias ou faltarem ao trabalho), possibilidade de poderem fazer o próprio salário.
 Nas palavras dos trabalhadores 

“Sou o meu próprio patrão ” (André, estivador.).

  A dimensão de serem “operários sem patrões” conforma uma identidade baseada na organização do trabalho portuário realizada pelos trabalhadores sindicalizados, numa situação que antecede a Lei de Modernização dos Portos. Esta identidade convive hoje com os elementos característicos do universo das transformações por que passa o Porto e, em sua maioria, são associados à dimensão da saúde ou suas consequências em processos de adoecimento. Nesse contexto o trabalho é definido tendo por referência uma atividade que envolve muitos riscos, baixos salários, horários irregulares de trabalho (finais de semana e trabalho noturno), alimentação inadequada, inexistência de assistência à saúde e desvalorização da atividade exercidaseja pelos empregadores, seja por parte da população. 

“O tempo é tão escasso que a gente vira um escravo do serviço” (Alberto, capataz). 
  “Eu me acostumo. Gostar da vida que a gente leva, perigosa, ganhando mal, sem plano de saúde, sem ser reconhecido, sendo sempre discriminado pelos empresários, os salários baixos, ninguém deve gostar muito disso não, mas a pessoa se acostuma, tem que trabalhar em algum lugar” (Josias, estivador).    

FONTE Ethos masculino, trabalho e cuidado à saúde entre portuários de Santos/SP  
Rosana Machin , Márcia Thereza Couto,   

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