Para a
grande maioria da população brasileira, acostumada a um mundo de relações de
trabalho baseadas , nas jornadas definidas e nos salários
fixos, muitas vezes é difícil compreender a lógica da luta dos trabalhadores do
porto, com seu sistema de contratação avulsa, salário e jornada indefinido, e,
sobretudo, ambiente de trabalho distante da realidade a que se pretende
alcançar a todos os trabalhadores – um meio ambiente de trabalho sustentável,
nos termos do que disciplina a Constituição Federal art. 225.
O
trabalhador portuário está sujeito a um ambiente de trabalho sui generis. Este
ambiente de trabalho, distante da realidade de muitos, demonstra-se, sobretudo,
inseguro, insalubre e deveras perigoso, sujeito a péssimas ou inexistentes
condições ergonômicas, operacionais e de infra-estrutura, sem um controle
físico-sanitário adequado, suscetível, portanto, a toda a sorte de riscos
ambientais.
Por ambiente de trabalho entende-se o conjunto de fatores físicos,
climáticos ou quaisquer outros que, interligados ou não, estão presentes e
envolvem o local de trabalho do trabalhador.
Nesse contexto, um ambiente de
trabalho sustentável implica em um conjunto de condições existentes no local de
trabalho voltados à qualidade de vida do trabalhador, meio ambiente este que
acolhe a maior parte dos cidadãos brasileiros por um longo período de suas
vidas. Portanto, as agressões cometidas contra o ambiente laboral não
prejudicam somente o trabalhador e sua família, mas toda a sociedade.
A
Constituição Federal erigiu a categoria de garantias fundamentais o direito a redução
dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e
segurança (art.7º, inciso XXII), e determinou que no sistema de saúde o meio
ambiente do trabalho deve ser protegido (art. 200, inciso VIII), a idéia de que
o meio ambiente do trabalho transcende a questão de saúde dos próprios
trabalhadores, extrapolando para toda a sociedade.
Neste cenário a Constituição
Federal de 1988, que traz na Carta Magna: o Princípio do Direito Social ao
Trabalho em um Meio Ambiente Sustentável, com fito de propiciar vida digna aos
trabalhadores e as suas famílias.
E uma das finalidades deste princípio e de
toda a regulação protetora do trabalho no que concerne a normas de segurança e
medicina do trabalho é de que todo e qualquer empreendimento deve observar sua função
social (CF/88, art. 170, inc. III), traçar metas para convergir sua finalidade
econômica com os objetivos sociais e de proteção ambiental.
As normas de
segurança e medicina do trabalho visam não só a prevenção contra acidentes do
trabalho, doenças ocupacionais e outras formas de acidentes equiparados, mas,
sobretudo, objetivam a saúde física e psíquica e a higiene do trabalhador
enquanto indivíduo e parte da coletividade.
Por essa razão a mens legis
constitucional tem como fulcro a proteção desse bem maior e de todos direitos a
ela relacionados, inclusive o direito a um ambiente laboral salutar.
A
integridade física e mental dos trabalhadores depende da tutela da saúde,
higiene e segurança, inerentes ao meio em que realizam suas atividades laborais
e também ao meio externo.
Contudo, a realidade na maioria das vezes se
distancia do campo ideal assegurado pela norma constitucional. Mais distante
ainda se torna esta disparidade entre o mundo do ser e o mundo do dever ser
quando a realidade do dia-a-dia toca as raias do desconhecido, do inabitado, do
inatingível.
Diz-se isso porque até bem pouco tempo atrás o cais do Porto era zona
inóspita e desconhecida dos fiscais do Ministério do Trabalho. Em que pese o
dever do Estado em implantar e implementar também na zona portuária todas as
medidas necessárias à manutenção de um meio ambiente laboral sustentável,
visando dar ao trabalhador portuário condições dignas para executar o seu
trabalho, a realidade a que tais trabalhadores estavam e ainda estão submetidos
em muito se distancia destes objetivos.
Inegavelmente, diga-se de passagem, a
introdução da Lei dos Portos veio a piorar tal realidade à
medida que ampliou com a criação do porto desorganizado , que fica ao lado do
porto organizado.
Os tais agentes, seja eles provenientes do capital privado de
um modo de produção cuja organização do trabalho se afasta do racional, em que
as funções sejam executadas não segundo a capacidade e força do trabalhador,
mas sim segundo o tão desejado lucro.
A partir desta realidade sobressai ao
mundo dos fatos, por vezes tão distante da norma positiva, inevitavelmente
extenuação física e mental do trabalhador, seja por meio de execráveis horas
extras habituais, seja pela exigência de produtividade excessiva ou ainda de
outras formas de agressões à saúde como a jornada de trabalho incompatível com
as atividades insalubres, perigosas e penosas e alterações impróprias do tempo
para descanso, entre outras atitudes danosas à incolumidade do ser humano.
A
realidade do trabalho portuário é extremamente penosa, pois os trabalhadores
permanecem expostos às intempéries seja do calor excessivo, seja dos ventos,
seja das baixas temperaturas. O desgaste físico é enorme, além da
responsabilidade. Todos estes fatores levam o homem à fadiga se expostos por
longos períodos.
CHRISTOPHE
DEJOURS, no livro
“A Loucura do Trabalho – Estudo de Pscicopatologia do
Trabalho”,
relata muito bem um pouco deste ambiente de trabalho sui generis a
que estão submetidos os trabalhadores portuários, muitas vezes aparentemente
indiferentes aos riscos e desafios da profissão, numa espécie de sistema
defensivo para controlar o medo, vejamos o referido relato:
Depois que o momento de desafio já passou, os trabalhadores contam os acidentes
a que assistiram ou dos quais foram vítimas. Falam dos amigos mortos ou feridos
no trabalho. Evocam também as famílias dos feridos.
E o risco? Melhor que os
outros, os trabalhadores é que o conhecem e o vivenciam no dia-a-dia. Assim que
tais revelações aparecem, não deixam dúvida alguma pelo tom da expressão e da
emoção. A vivência do medo existe efetivamente, mas só raramente aparece à
superfície, pois se encontra contida, no mínimo, pelos mecanismos de defesa.
Apesar do risco de crítica, afirmamos que se o medo não fosse assim
neutralizado, se pudesse aparecer a qualquer momento durante o trabalho, neste
caso os trabalhadores não poderiam continuar suas tarefas por muito tempo mais.
A consciência aguda do risco de acidente, mesmo sem maiores envolvimentos
emocionais, obrigaria o trabalhador a tomar tantas precauções individuais que
ele se tornaria ineficaz do ponto de vista da produtividade.
As atitudes
de negação e desprezo pelo perigo são uma simples inversão da afirmação
relativa ao risco. Mas esta estratégia não é suficiente.
Conjurar o risco exige
sacrifícios e provas das mais absolutas.
É por isto que os trabalhadores às
vezes acrescentam ao risco do trabalho o risco das performances pessoais e de
verdadeiros concursos de habilidade e bravura. Nestes testes rivalizam entre
si, mas ao fazê-lo tudo se passa como se fossem eles que criassem cada risco, e
não mais o perigo que se abate sobre todos, independentemente de suas vontades.
Criar uma situação ou agravá-la é, de certo modo, dominá-la.
Este estratagema
tem um valor simbólico que afirma a iniciativa e o domínio dos trabalhadores
sobre o perigo, e não o inverso.
A primeira característica desta fachada
– a
pseudoinconsciência do perigo –
resulta, na realidade, de um sistema defensivo
destinado a controlar o medo. A segunda especificidade é seu caráter coletivo.
A eficácia simbólica da estratégia defensiva somente é assegurada pela
participação de todos. Ninguém pode ter medo. Ninguém pode recusar sua
contribuição individual para o sistema de defesa.
Nunca se deve falar de
perigo, risco, acidente, nem do medo. E estas instruções implícitas são
respeitadas. Os trabalhadores não gostam de ser lembrados do que tão
penosamente procuram exconjurar.
Esta é uma das razões pelas quais as campanhas
de segurança encontram tanta resistência. Os trabalhadores bem sabem que as
rédeas da segurança não evitarão todos os acidentes.
Obrigar a que as coloquem
é, antes de tudo, relembrar-lhes que o perigo existe mesmo e, ao mesmo tempo,
tornar-lhes as tarefas ainda mais difíceis, pois mais carregadas de ansiedade.
Verifica-se pelo diagnóstico apresentado que o risco é inerente a profissão e a
atividade do trabalhador portuário. Cessá-lo é impossível, e reduzi-lo é tornar
menos produtivo e eficiente o trabalho prestado.
Como refere CHRISTOPHE
DEJOURS,
o próprio trabalhador prefere não dimensionar o risco a que está
submetido, sob pena de tomar tantas precauções individuais que ele se tornaria
ineficaz do ponto de vista da produtividade.
Portanto, não interessam a eficiência
do Porto, a busca pelo lucro do operador portuário, e a própria sobrevivência
do trabalhador portuário, inserido em um ambiente de disputa a adoção de
instrumentos que visem coibir ou diminuir os riscos da atividade. Esta
realidade reflete-se na saúde do trabalhador, sujeito a acidentes e doenças,
nem sempre, ou quase nunca, divulgadas ou registradas pelos órgãos competentes.
A imprecisão dos dados estatísticos sobre acidentes de trabalho na área
portuária é conseqüência do fato de os trabalhadores receberem remuneração
apenas de acordo com o trabalho desenvolvido.
Ocorre que a média salarial dos
portuários avulsos é superior á de grande parte dos trabalhadores de outros
setores, logo muitos trabalhadores não comunicam pequenos acidentes, com receio
de que sejam afastados do trabalho pelo INSS e recebam apenas o auxílio
previdenciário, bastante inferior aos rendimentos normalmente auferidos.
Portanto, é ainda comum nos portos brasileiros presenciar trabalhadores
acidentados ou doentes trabalhando.
É, portanto, diante desta realidade, que o
legislador, impulsionado pela demanda advinda dos trabalhadores portuários,
acabou por instituir a estes trabalhadores, “a fim de remunerá-los pelos riscos
relativos à insalubridade, periculosidade e outros porventura existentes, um
‘adicional de riscos’ de 40% do valor pago a título de salário-hora ordinário
do período diurno de trabalho” (art. 14 da Lei nº 4860/65).
Publicado na Revista Justiça do Trabalho nº 260, HS Editora, agosto/2005, p. 44-66.Imagen Cristiano Campos.
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