30 de ago. de 2016

As cidades portuárias


Existem inúmeras reflexões sobre as cidades portuárias na literatura técnico-científica, geralmente abordando o envolvimento da cidade com o aumento da atividade portuária e os conflitos gerados à medida que os portos se expandem. Isto se deve à disputas pelo uso das áreas adjacentes aos portos, o abandono de áreas anteriormente utilizadas, inadequadas frente às novas tecnologias operacionais e o envolvimento econômico entre o porto e a cidade, principalmente através da geração de empregos.
 Conesa 1997 e Ornelas 2008 fizeram uma síntese dos principais trabalhos multidisciplinares relacionados ao tema. Os primeiros trabalhos sobre a evolução dos portos e suas relações com as cidades devem-se a Morgan 1954 e Bird 1963. Este último criou um modelo de evolução de 5 estágios, denominado Anyport, testado em inúmeros portos, posteriormente sintetizados em 3 etapas por Rodrigue 2007,: 
a) Estabelecimento: o estabelecimento inicial de um porto é fortemente dependente de aspectos geográficos. Um padrão de evolução de um porto começa a partir de um ponto original, muitas vezes um porto de pesca com atividades de comércio e de construção de barcos, que inclui vários ancoradouros; 
b) Expansão: a Revolução Industrial desencadeou diversas mudanças que impactaram as atividades portuárias. Ancoradouros foram expandidos e píers foram construídos para atender à quantidade crescente de mercadorias, de pessoas e de navios maiores. À medida que o tamanho dos navios aumentou, a construção destes tornou-se uma atividade que passou a requerer a construção de diques. Além disso, a integração de linhas férreas aos terminais portuários permitiu o acesso a uma vasta hinterlândia com um crescimento proporcional do tráfego marítimo. Atividades relacionadas ao porto também se expandiram tremendamente incluindo atividades industriais; c) Especialização: construção de píers especializados para manejar cargas tais como contêineres, minérios, grãos, petróleo e carvão, o que fez expandir as necessidades de armazenamento significativamente. 

Navios de maior capacidade freqüentemente requeriam dragagem ou construção de longos píers dando acesso a profundidades maiores. Esta evolução implicou, para vários portos, a migração de suas atividades para longe da área de sua fixação original e um incremento de sua capacidade de manejo e de carga. Por outro lado, os sítios portuários , comumente adjacentes às áreas centrais da cidade, tornaram-se obsoletos e foram  abandonados. Numerosas oportunidades de reconversão das instalações portuárias para outros usos foram criadas, tais como parques de frente para o mar, ou o desenvolvimento de áreas residenciais e comerciais. Para Daamen 2007, o conceito de porto proposto por Bird é uma função direta da relação entre forma e função, na qual o espaço portuário é visto como uma sucessão cronológica e linear em fases de desenvolvimento historicamente distintas. Daamen, reiterando questionamentos efetuados por outros autores, concluiu que a relação porto-cidade é muito mais ampla em outras dimensões  sendo que as questões políticas também tornaram-se um fator importante nas relações entre porto e cidade. Sob a perspectiva de planejamento, este deve incorporar conceitos do grau em que porto e cidade afetam um ao outro em termos do uso do solo, o contexto do transporte urbano e oportunidades de emprego, temas que dão margem a um debate controverso em níveis local e regional. Daamen 2007, analisando o caso do porto de Rotterdãm, mencionou que é possível estimular o desenvolvimento espacial de forma a aproximar novamente porto e cidade. Nottebom & Rodrigue 2005 também observaram inconsistências no modelo Anyport para explicar alguns fenômenos contemporâneos do  desenvolvimento portuário
A primeira é que o modelo não considera o crescimento recente de terminais marítimos que agem principalmente para o transbordo de cargas os hub ports e distribuição para demais portos hub-spoke e as redes de distribuição seqüenciais. Segundo, o modelo não inclui a dimensão da hinterlândia como um fator determinante da dinâmica portuária. Para Fortis 2004, as cidades portuárias têm uma tendência fortíssima de passar por ciclos, que às vezes são de grande vigor e depois de forte decadência, principalmente nas áreas de retroporto. Estes ciclos resultam, para muitos autores, em uma relação conflituosa entre a cidade e o porto. Segundo Caldeirinha 2007, a crescente necessidade de espaço para expansão dos portos comerciais, fruto do elevado crescimento do transporte marítimo e da globalização, origina autênticas guerras por espaço entre os portos e os municípios, podendo-se identificar vários tipos de modelos de relacionamento cidade-porto, que depende muito da história de cada país e de cada cidade. Ducruet 2004; 2008 propôs uma classificação mundial para a relação cidade porto, com denominações específicas conforme o tamanho da cidade e o tráfego do porto. Conforme o tráfego e tamanho da cidade adotam-se denominações específicas. Portos com pequeno tráfego situados em cidades pequenas, por exemplo, devem ser denominadas de município de porto costeiro e, cidades de grande porto com um elevado tráfego de metrópole de porto internacional. Godoy 1998; 2002a; 2002b, ao estudar o porto de Paranaguá PR, com base em estudos realizados em seis portos europeus Liverpool, Marselha, Hamburgo, Gênova, Rotterdãm e Barcelona por outros autores, ligados principalmente à escola francesa, indica que as relações entre a cidade e o porto modificam-se ao longo do tempo, passando por três momentos distintos, descritos como:
 a) Fase de união: até os anos quarenta do século XX, a maioria dos portos do mundo vivia esta fase, fato também mencionado por Muñoz 2004. O aumento da movimentação de mercadorias no porto levava a um aumento das atividades econômicas na cidade, indicando que ambos caminhavam na mesma direção;
 b) Fase de divórcio: o processo de globalização, ligado à revolução tecnológica e que permitiu a divisão internacional do processo produtivo, resultou no rompimento da união entre porto e cidade. A fase de divórcio é constatada por diversos autores, estando associada à evolução da tecnologia no transporte marítimo que enfraquece os laços tradicionalmente estreitos entre as cidades e os portos, tendo à frente o grande aumento dos terminais de contêineres e dos métodos de transporte Roll-on Roll-off. Ocorre o afastamento das instalações portuárias do centro da cidade, bem como do complexo industrial a ele ligado; abandono e/ou degradação do centro da cidade; redução substancial do emprego direto no porto; diminuição da participação do complexo portuário no emprego global; declínio do nível de emprego geral do setor urbano, declínio demográfico e forte polarização social com exclusão social, racismo, dificuldades do jovem trabalhar, entre outros;
 c) Fase de reconversão: nesta fase ocorre um processo de polarização social, na qual há uma população integrada à moderna tecnologia e outra marginalizada/excluída. Esta fase compreende a implementação de projetos em sua maioria estatais que visam a recuperação dos centros degradados/abandonados, a busca de alternativas de atividades econômicas que estejam somente ligadas ao porto e o incentivo ao turismo. Pavón 2003 afirmou que se a relação cidade-porto pudesse ser expressa graficamente, o resultado seria uma curva senoidal, com seus máximos e mínimos. 
Em definitivo, a relação passou de uma estreita vinculação a um frio distanciamento, desejando-se, na atualidade, o encontro do eixo de equilíbrio das abscissas, representativo para as realidades geográfica, jurídica e econômica. 
O autor descreveu quatro fases na relação porto-cidade: 
a) etapa de união cidade-porto
b) etapa de crescimento e distanciamento cidade-porto;
c) etapa de isolamento e separação cidade-porto; e
d) etapa de re-aproximação e integração cidade-porto
Todos os trabalhos sobre a relação cidade-porto mencionam que atualmente muitos portos e cidades procuram desenvolver políticas conjuntas relacionadas ao uso do solo, vias de acesso, de forma estratégica a reintegrar as duas “instituições” anteriormente isoladas, com distintas denominações, como, por exemplo, “reaproximação”, “reintegração” e “reconversão”.
 Neste processo de aproximação entre porto e cidade tornou-se comum o processo de requalificacão ou revitalização urbana de áreas anteriormente utilizadas pela atividade portuária, abrangendo grandes espaços dentro das cidades portuárias, abandonados até então.
 O IACP 2007 propõe um guia de “boas práticas” para tais projetos. 
Para Monié & Vidal 2006, no caso de cidades portuárias com papel econômico central regional, são necessários investimentos estruturais e funcionais que perpassam os limites do território portuário.
 Nessa perspectiva, o papel integrador do espaço produtivo, das cidades portuárias, seria fortalecido. O alargamento da cadeia produtiva impõe às cidades portuárias enfrentamentos complexos que vão desde questões estruturais e instrumentais do próprio cais, até o embate com questões socioeconômicas e ambientais, antes tratadas isoladamente e desconsideradas da cadeia produtiva, bem como a definição de políticas e instrumentos necessários à gestão do porto e da cidade.
 Nesse caso, parece oportuno discutir e recuperar aspectos da relação entre as cidades e seus portos. A complexidade dos impactos gerados pela atividade portuária, todavia não se limita apenas à área continental onde o porto se localiza, mas abrange o corpo aquoso adjacente, pois existe intensa movimentação de navios e a necessidade de dragagens, cuja atividade pode ter efeitos sobre a pesca da qual dependem comunidades locais, sobre a qualidade das águas costeiras e sobre o turismo, entre outros variados aspectos, que conduzem à necessidade  de uma gestão adequada. Rodrigue 2007 indica que existe um limite de interferência como environmental filter, ou “filtro ambiental”, tanto no continente como nas águas costeiras adjacentes, decorrentes do conflito/interação entre a cidade e o porto, que abrange aspectos ligados ao uso do solo, tecnologia, economia, política e legislação . 
No Brasil existem alguns poucos trabalhos sobre a relação entre os portos e as cidades, destacando-se os efetuados por Duarte 2005, Thiesen & Barros 2009, Andreotti e Santos & Lenzi 2006 no Rio de Janeiro, Soares & Lima Jr. 2005 em Vitória ES, Campos 2002 e Gomes 2006 em Recife PE, Godoy 1998, 2000, 2002a e 2002b em Paranaguá PR, Souza 2006, AGEM 2002 e Ornellas 2008 em Santos SP, Santana 2003 e Mendonça 2005 em Salvador BA e Vieira & Viana 2000 no Rio Grande RS.

Fonte Os portos de Paranaguá (PR) e Itajaí (SC): análise comparativa das suas relações com as cidades de inserção, da estrutura operacional atual e das condições sócio-ambientais das regiões de entorno / Carlos Roberto Soares. – Curitiba, 2009.

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