22 de set. de 2017

Treinamento: das apostilas e simuladores ao Guincho

 A organização do trabalho portuário é composta por uma série de normativas que direcionam amplamente a atuação do guincheiro: os objetivos a serem alcançados e o que se faz importante atentar-se para exercer o trabalho.
 Tais direcionamentos, os quais vêm da ordem da determinação é o que entendemos por trabalho prescrito, antecipam a atividade e fornecem subsídios ao trabalhador para atuar e dispõe, “de um lado, a regras e objetivos fixados pela organização do trabalho e, de outro, às condições dadas” . Telles e Alvarez  definem as prescrições como um “conjunto de condições e exigências” que, no caso do guincheiro, abrange tanto as prescrições dispostas pela organização do trabalho (a NR 29, Lei 8.630/93; Lei 12.815/2013), os procedimentos técnicos e de segurança, os acordos coletivos, as metas de produção, as demandas do empregador, o treinamento, o plano de carga etc.), quanto às condições pré-definidas (como os fatores sociais e econômicos, o ambiente portuário, os equipamentos, os recursos utilizados etc.). A esse aspecto mais abrangente do que seria o trabalho prescrito que abarca os procedimentos, as regras e normas da organização, as condições pré-definidas e tudo aquilo que antecipa a atividade, formam um conjunto de normas que antecedem a atividade.

 No entanto, é o treinamento que serve como base para os novos trabalhadores apreenderem as técnicas e conhecerem o funcionamento dos equipamentos com os quais irão lidar. O treinamento/formação do guincheiro é orientado por uma prescrição em forma de apostila.  Como se dá o treinamento para a atividade de operador de guindaste de bordo? Como o treinamento lida com os saberes da atividade do guincheiro? Tal treinamento de operação de guindaste de bordo é fornecido pelo OGMO (com o apoio do Sindicato dos Estivadores) e constitui-se em três etapas: teórica, teórico-prática, com uso do simulador, e prática, embarque treino. A etapa teórica e a simulação são realizadas  na UCL. Ao tomarmos a apostila como base , percebemos que a etapa teórica é dividida em duas partes: 
- A primeira tem como foco a comunicação e cooperação entre os trabalhadores, com a finalidade de fomentar o trabalho em equipe, melhorar a convivência dos grupos e o relacionamento interpessoal;
 - A segunda envolve conhecimento e habilidade técnica para realizar a operação de guindaste de bordo. A segunda parte, que envolve o conhecimento técnico, visa identificar as características dos equipamentos em diferentes aspectos como: os diferentes modelos e como eles funcionam; os comandos de giro (rotação do guindaste), elevação, basculamento (arriar ou levantar a lança), bem como os movimentos combinados possíveis; os tipos de acessórios utilizados na operação (ganchos, olhal, estropos, manilha, moitão, grab) ; e as regras de segurança do equipamento e da operação (aspectos gerais de segurança: capacidade de carga que cada guindaste pode operar; inspeção, saber identificar as áreas de perigo). 
 O reconhecimento da cabine pelo trabalhador é uma forma de antecipação de possíveis eventualidades e condições de uso do equipamento. Elas são realizadas com base nesse conhecimento técnico sobre o local de trabalho. No que tange às normas, o trabalhador deveria realizar essas “inspeções” a cada contato com o equipamento, uma vez que a diversidade de aparelhos de guindar resulta em não saber previamente o que se vai encontrar quando chegar ao navio.  Durante a troca de turno, os guincheiros repassam quais foram as dificuldades encontradas no turno anterior e a forma como o equipamento reagiu, se estava mais lento, mais acelerado, se apresentou alguma falha, ou seja, uma forma de antecipação da atividade pela experiência que é fonte de saber. Na segunda etapa do treinamento, o trabalhador é, então, submetido ao simulador para aplicar os procedimentos estudados. Esta é a maior parte do curso, “foram quase uma semana indo pra você se acostumar com o equipamento” . 
Os simuladores  são réplicas da cabine do guindaste, possuem assentos, televisores e manches (controles para realizar as operações), onde são desenvolvidos os procedimentos padrão. Nesta etapa, é repassado a cada trabalhador um plano de carga para ser realizado. O guincheiro deve conseguir listar todos os procedimentos operacionais em sequência lógica; conhecer os procedimentos para situações padrão e as situações inesperadas como: a emergência e seus comandos, as condições climáticas desfavoráveis e os procedimentos para interromper uma operação de forma segura. Esse enfoque do treinamento como uma sequência lógica de procedimentos nos remete a uma visão do trabalhador enquanto executor que se aproxima do modelo tradicional de formação.
 Zarifian  tece uma crítica a tais modelos por estes terem como objetivo uma aprendizagem técnica que visa preparar o sujeito para ocupar determinado posto de trabalho, dentro da lógica do sistema taylorista. Schwartz  corrobora com essa crítica, ao apontar que o modelo taylorista de trabalho tinha por anseio prever as ações dos sujeitos dentro de um plano operacional a ser executável, equivalente a um “protocolo experimental” (execução de tarefas), o que implica na abreviação do agir sobre/no trabalho. Le Breton salienta que na realidade virtual “as percepções são realmente sentidas”, mesmo que o corpo esteja incorpóreo, uma vez que “se vê livre da gravidade, o do abandono das impressões corporais ordinárias, com o que elas implicam de imprevisibilidade”. Dentro desta concepção, Le Breton chama atenção para a trivialidade das ações que ocorrem no trabalho real e que o simulador não consegue abarcar. Ele possui uma programação que está inteiramente subjugada às normas e prescrições que antecipam o trabalho. Sua função primordial é justamente trabalhar os movimentos do corpo dentro da cabine, enquadrar os gestos, promover repetições. Desse modo, colocamos em questão uma possível compreensão de que as competências para o desenvolvimento da atividade podem ser totalizadas, ou mesmo simuladas, ou seja, como se pudessem ser cientificamente conhecidas à priori, antes mesmo da confrontação do trabalhador com o meio que será sempre infiel. No virtual “não se tem a influência da água e do navio no guindaste, mas ela existe, ela é presente e precisa ser compensada.  No real, deve haver a compensação do balanço do mar sobre o navio e o equipamento. Chamamos atenção, portanto, da temporalidade da atividade com a qual o simulador não conseguirá repetir e que na visão do guincheiro deve ser compensada. Uma a competência em lidar com o balanço que só se desenvolve em atividade. Percebemos que a atividade não pode, em sua totalidade, ser simulada, visto que a vida extrapola a mecanização das ações depreendidas pelos trabalhadores. Viver é produzir novos modos de existir. Na simulação, trabalha-se a aprendizagem técnica, pois os trabalhadores mobilizam esses saberes apreendidos quando estão em operações, e sensório-afetivo, no qual abarca as percepções e emoções dos trabalhadores. No âmbito do virtual, as sensações e as emoções são realmente sentidas . A utilização dos meios virtuais para o processo de formação se faz importante por trabalhar tanto os procedimentos técnicos quanto sensório-afetivos. Todavia, deve haver uma reflexão a partir das emoções vivenciadas em simulação, como nos apontam Maturana e Dávila, de modo que o trabalho entre em cena no debate reflexivo. 

Os instrutores, nesse caso guincheiros que já atuam há  tempo na estiva, devem promover espaços de debate e reflexão que visam fomentar o compartilhamento de experiências singulares e coletivas.  O treinamento teórico/simulado fornece subsídios para a atuação no real, porém ele não consegue e nunca conseguirá abarcar a multiplicidade e a variabilidade presente em cada situação de trabalho, pois a atividade escapa qualquer tentativa de enquadramento. Uma vez que a simulação antecipa a atividade, enquanto norma antecedente, ela deve estar em congruência com a atividade real dos guincheiros.  O guindaste em movimento não é uma simples máquina, mas um acoplamento complexo entre o corpo e a máquina que torna possível lidar e gerir as imprevisibilidades. Trabalhar é confrontar cotidianamente com o prescrito, a tarefa. A atividade extrapola as normas, ela produz saberes, produz desvios e fissuras naquilo que é pensado de antemão.  Em atividade, portanto, os trabalhadores reinventam meios ao burlarem os procedimentos, não por indisciplina ou por simples transgressão, mas como forma de dar conta da complexidade que o real comporta . No caso dos guincheiros, se os mesmos seguissem as prescrições de modo restrito, uma crise nos meios de produção se instauraria. Desse modo, percebemos que os modos de operar são mutáveis de acordo com as experiências vividas no cotidiano dos embarques, nas repetições e aprimoramentos das técnicas, no desenvolvimento de novos saberes. Seriam os guincheiros, então, camaleões que se adaptam as novas formas de trabalho , transformando a si e a atividade, a cada nova experiência vivida? E inclua no decorrer do percurso uma ampla visão dos modos operatórios, a “apreensão do saber tecnológico, a valorização da cultura do trabalho e a mobilização à tomada de decisão” . 
Ao entendermos que o meio é dotado de componentes da ordem do imprevisível, a atividade jamais poderá ser padronizada, muito menos reduzida à simulação. Ao propormos uma discussão acerca treinamento dos guincheiros, chamamos a atenção para que tal processo paute em debate as invenções e recriações dos guincheiros promovidas na atividade. Entendemos que o formar não deve ser reduzido a conformações e automatismos. O processo de formação carece de abranger os saberes da atividade, ao que Schwartz denomina de “saberes investidos”, produzidos nas aderências e nos desvios gestionários da atividade. Esses saberes, encontram-se encarnados no corpo e são frutos do engajamento dos sujeitos no trabalho. Ao trabalhar, o guincheiro é confrontado nos encontros que se constituem com os outros trabalhadores da estiva, com os trabalhadores da capatazia,  com os prepostos dos operadores  com os “gringos” , com os instrumentos e as variabilidades a serem geridas, com seus anseios, sua história de vida e da história coletiva da estiva. Ou seja, a atividade de guincheiro se produz com uma série de vetores que tencionam a produção de um meio heterogêneo, complexo e infiel. A formação do guincheiro não se encerra no treinamento, ela é constante no decorrer da atividade, à medida que há uma dupla antecipação dos saberes que, por um lado, antecipa-a e, ao navio. Essa problemática pode servir como dispositivo para se pensar em um constante processo de formação dos guincheiros.
Fonte OFÍCIO DE GUINCHEIRO: ANÁLISE DA ATIVIDADE DOS OPERADORES DE GUINDASTE DE BORDO NO COMPLEXO PORTUÁRIO DO ESPÍRITO SANTO - GUSTAVO ROBERTO DA SILVA

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