23 de set. de 2017

Treinamento do Guincho: uma questão de ofício?

  O treinamento,  foi uma demanda do processo de reestruturação produtiva e modernização dos portos. Antes, os guincheiros entravam no porto e iam direto para operação, aprendiam a operar guindaste na “marra”, no dia-a-dia dos embarques. O estivador aprendia as técnicas de como operar guindaste de bordo, em operações com cargas , como no granel, no qual o guincheiro realiza a transposição da carga sem estivadores no porão. Só então, quando desenvolviam um saber prático, engajavam-se nas operações com mão de obra intensiva. Tal processo era gradativo e a aprendizagem ocorria nas relações interpessoais entre guincheiros. Aprendia-se com o outro. Além disso, antes da aplicação do ISPS Code , havia a possibilidade de entrar no porto e nas embarcações, mesmo sem ser recrutado, o que possibilitava realizar o contato com o equipamento e com os outros trabalhadores. Após o Código, o acesso só é possível caso o trabalhador esteja engajado. 

Tal artifício nos remete ao processo histórico da atividade portuária  em seu aspecto coletivo, sob a ótica do aprendizado pela/na atividade , as experiências dos trabalhadores,são compartilhadas entre si. Um saber-fazer constituído por um fazer para saber-fazer, firmado no espaço-tempo a partir da práxis advinda das inúmeras variabilidades presentes na atividade portuária, em meio aos diferentes tipos de navios e cargas que por lá passavam. Contudo, as mudanças ocorridas com a reestruturação produtiva dos portos fomentaram a exigência por qualificações profissionais especificas? Com relação ao treinamento,  hoje há uma discrepância entre o treinamento teórico-simulado e a atuação do guincheiro no trabalho. Os novos guincheiros saem do curso de treinamento sem uma ampla visão e compreensão do funcionamento do processo de estivagem da carga. Esse distanciamento existe, uma vez que as prescrições nunca conseguirão abarcar as complexidades existentes nas operações portuárias, pois há infinitas possibilidades agir que serão geridas somente por quem trabalha no ato de trabalhar. Mesmo que o simulador,  tenha possibilitado aprender o manejo do equipamento, a atividade do guincheiro extrapola o simples ato de movimentá-lo ou mesmo de pegar e arriar a carga. Há guindastes mais lentos, outros mais rápidos. Há o movimento da maré, a instabilidade da embarcação no início da operação e o balanço da carga, atos que devem ser contidos. E, além disso, há trabalhadores, vidas em movimento, nos porões e nos conveses dos navios. Tudo isso faz parte da atividade do guincheiro .Na tentativa de diminuir “defasagem que existe no treinamento” , incorporaram no processo formativo o embarque-treino, que consiste em promover até 6 embarques com a finalidade de promover o contato dos novos trabalhadores com outros guincheiros (na posição de instrutores), e assim desenvolverem um conhecimento de ordem prática. Tal estratégia consiste num tentame de resgatar um modelo de transmissão do saber-fazer recorrente no acesso ao trabalho no porto antes da reestruturação produtiva. O objetivo do embarque treino é promover um encontro entre o novato e o trabalhador antigo em situação real de trabalho, no qual o treinamento passa pela via do aprendizado sensível, “pegar a sensibilidade do outro guincheiro” . 
 O aprendizado, neste caso, extrapola a comunicação verbal, pois é um saber investido pelos gestos e pelos detalhes do como se opera o guindaste. Aprendizado que acontece em uma conexão entre corpos. Tem-se, portanto, uma estratégia formativa que passa pela via da experiência encarnada, acessada pelas relações estabelecidas entre os trabalhadores. Apostamos no porão como estratégia e mecanismo de formação para os guincheiros, visto que os saberes e as técnicas apreendidas de modo informal nas relações interpessoais servem de base para realizar a operação, uma vez que não cabe ao guincheiro somente a movimentação das cargas, mas saber todo o processo de estivagem.  O porão figura um território arriscado, composto por perigos imanentes que o “sobrevoa” a cada carga que desce e a cada obstáculo encontrado. Ao mesmo tempo, figura-se nele um campo no qual se misturam modos heterogêneos do exercício da atividade do estivador à medida que coexistem atividades plurais convocadas a agir frente à complexidade de uma operação de estivagem. O porão é, por conseguinte, um território de encontros possíveis que fortalecem uma relação dialógica dos saberes apoiados no e pelo coletivo. 

Entendemos que adentrar o território porão é acessar atividade do guincheiro por configurar um cenário amplo da atividade da estiva, visto que há na atividade racionalidades múltiplas que vão além dos gestos, desempenhos visíveis e detalhes do cotidiano. Assim, tornar-se guincheiro vai além dos procedimentos técnicos de manuseio do guindaste, é preciso adquirir conhecimento de base da estiva para, posteriormente, operar as máquinas e tornar o trabalho eficaz .   Há uma afinação do instrumento que passa do coletivo ao pessoal, possibilitando ao guincheiro criar sua melodia, ou seja, a história coletiva do ofício no indivíduo. Uma história que passa pelas técnicas apreendidas, pela cognição e, sobretudo, pelo corpo .Mesmo com a experiência de um estivador/guincheiro antigo no porto, entrar no porão se torna uma aposta, um mecanismo para compreender as mudanças que ocorreram e que sempre irão ocorrer, uma vez que a atividade se encontra viva no processo de estivagem. Ser guincheiro é estar atento às mudanças, aos modos de operar e às técnicas que se modificam com a chegada de novas tecnologias. Porém, não adianta somente se informar, é preciso experimentar. Entrar em contato com o trabalho, se apropriar das “novas realidades” e das experiências do porão, pois o bom guincheiro é aquele que sabe de estivagem, que sabe como a carga é organizada no porão dos navios, de como é feita a arrumação, a peação, os sinais para comunicação, o que é ser estivador de porão e como manusear a carga. Assim, a formação do guincheiro passa pela confrontação das experiências que emergem no cotidiano dos porões, da qual é possível reelaborar novas formas de lidar com as mudanças tecnológicas, bem como criar e incorporar novas regras informais que o auxiliam no processo de estivagem.Todo esse processo facilita a vida no trabalho.  O ofício não está entre os trabalhadores, mas no próprio trabalhador que se apropria dele como um “interlocutor coletivo interno, a memória, a diapasão profissional de que o sujeito pode dispor em seu foro íntimo e para si mesmo, a fim de agir” . A preocupação para com os novos trabalhadores que, ao passarem no concurso, já almejam ingressar na função de guincheiro motivados pelo ganho salarial. A própria organização do trabalho promove essa busca por produção e atividades  específicas, do qual os novos acabam por compartilhar ao acessarem este ofício. Tal preocupação decorre das normas informais coletivas que possui uma hierarquização entre as funções, ao priorizar sempre os trabalhadores antigos, de modo que os novatos têm que “entrar na fila”, esperar o tempo de se tornar um profissional e obedecer às formas de embarque, ou seja, às regras constituídas pelo coletivo. Muitos dos trabalhadores que ingressaram no último concurso já se tornaram guincheiro. O sindicato tem discutido quando tempo seria preciso para que o trabalhador permaneça nas atividades de base da estiva para, posteriormente, ter acesso às especializadas, de modo que experimentassem o “chão do porão”. Para os guincheiros é preciso ter maturidade profissional para assumir a atividade de operar guindaste de bordo, uma vez que entrar no porão se faz importante meio de acesso dos novatos à memória impessoal que compõe o ofício de estivador. Essa maturidade seria o tempo que o novato leva para apreender o processo de estivagem e, então, dominar o meio e tornar-se guincheiro. Apenas o treinamento no simulador não é suficiente para dar conta das penumbras da atividade de estivagem demandada nos porões.  
 A ação conjunta entre o guincheiro e o Portaló, reflete esse modo coletivo de pensar e agir no trabalho. A comunicação gestual e a afinidade entre os trabalhadores, permeadas por uma relação de confiança mútua, permitem, por exemplo, que uma carga pesada e perigosa à vida seja colocada no porão de forma segura, preservando todos.  O treinamento dos portuários, portanto, é atravessado por estas questões. Como ensinar o outro os saberes do ofício, se outro será um “concorrente”  nesse sentido, que o treinamento, como uma das dimensões da formação do guincheiro, possui função chave na constituição desse ofício. Ao entrar na atividade o trabalhador novato é exposto a diversas situações nas quais o coloca em confronto com os diversos gêneros que transpassam o coletivo. Gêneros que transitam entre um coletivo mantenedor da segurança, respaldado por ações coletivas e de confiança, e também atravessado pela alta competitividade, fundamentado na produção.  Os desgastes, as pressões e a intensificação do trabalho contribuem para que o trabalhador tenha seu poder de ação restringido por gêneros endurecidos que impedem o movimento do ofício, sua vitalidade, haja vista que os recursos disponíveis para ação estão enfraquecidos e com isso o trabalho não exerce para o sujeito sua função psicológica. Essa restrição do poder de ação produz efeitos que, de certo modo, legitima uma postura de fragilização do novato frente ao constrangimento do julgamento dos pares .  
Fonte
 OFÍCIO DE GUINCHEIRO: ANÁLISE DA ATIVIDADE DOS OPERADORES DE GUINDASTE DE BORDO NO COMPLEXO PORTUÁRIO DO ESPÍRITO SANTO - GUSTAVO ROBERTO DA SILVA

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