Neste ensaio busca-se aprofundar a reflexão
sobre o processo de análise na pesquisa qualitativa
a partir de autores referenciais e da experiência
da própria autora. O texto está organizado
em forma de decálogo por meio do qual é tratado
o tema processualmente. A hipótese é de que
uma análise para ser fidedigna precisa conter os
termos estruturantes da investigação qualitativa
que são os verbos: compreender e interpretar; e os
substantivos: experiência, vivência, senso comum
e ação social.
A seguir a proposta avança por 10
passos que se iniciam na construção científica do
objeto pela sua colocação no âmbito do conhecimento
nacional e internacional, na elaboração
de instrumentos que tornem concretos os conceitos
teóricos, na execução de um trabalho de campo
que envolva empaticamente o investigador no
uso de vários tipos de técnicas e abordagens, tornando-o
um construtor de relações, de observações e de uma narrativa em perspectiva. Por fim,
a autora trata da análise propriamente dita, mostrando
como o objeto, que já vem pensado em todas
as etapas anteriores, deve se tornar um construto
de segunda ordem, em que predomine a lógica dos atores em sua diversidade e não apenas as
suas falas, dentro de uma narrativa teorizada, contextualizada,
concisa e clara.
Introdução e estratégia de construção do texto
Neste artigo apresento uma reflexão sobre o processo
de análise qualitativa de estudos com base
empírica. O texto tem duas fontes de inspiração:
a primeira são os vários autores com os quais
venho dialogando durante mais de 25 anos. A
segunda é minha própria vivência como investigadora,
orientadora de teses e de dissertações e
como professora na área de saúde coletiva.
Começando pela minha experiência, ressalto
que de todas as demandas que recebo de estudantes
e colegas, a mais recorrente diz respeito a
como fazer análise do material qualitativo. É como
se todas as outras fases da pesquisa, a preparação do projeto e o trabalho de campo configurassem
etapas muito simples e fáceis de serem
resolvidas, em contraposição às dificuldades de
como tratar os achados empíricos e documentais.
Essa preocupação procede, pois é diferente
dos estudos quantitativos em que os dados colhidos
de forma padronizada e tratados com técnicas
de análise sofisticadas oferecem ao pesquisador
certa segurança quanto à fidedignidade de
seu estudo. Uma segurança que a rigor deveria
ser questionada . No caso da pesquisa qualitativa,
muitos outros problemas – que na verdade
são parte de sua própria contingência e condição
– dificultam saber de antemão se as informações
recolhidas e as análises elaboradas poderiam ser
consideradas válidas e suficientes.
Divido este trabalho em duas partes.
Na primeira,
mostro que uma boa análise começa com
a compreensão e a internalização dos termos filosóficos
e epistemológicos que fundamentam a
investigação e, do ponto de vista prático, desde
quando iniciamos a definição do objeto. Na segunda
parte, discorrei sobre o processo da análise propriamente dito.
Fazer ciência é trabalhar simultaneamente
com teoria, método e técnicas, numa perspectiva
em que esse tripé se condicione mutuamente: o
modo de fazer depende do que o objeto demanda,
e a resposta ao objeto depende das perguntas,
dos instrumentos e das estratégias utilizadas
na coleta dos dados. À trilogia acrescento sempre
que a qualidade de uma análise depende também
da arte, da experiência e da capacidade de
aprofundamento do investigador que dá o tom e
o tempero do trabalho que elabora.
Tento apontar algumas questões cruciais que
oferecem as balizas da objetivação e do caráter
incompleto, provisório e aproximativo do conhecimento .
Discussão
As premissas para a discussão da análise qualitativa
estão apresentadas em forma de decálogo, na
busca de facilitar a compreensão para os que buscam
se familiarizar com a abordagem qualitativa.
Primeiro: Conhecer os termos estruturantes
das pesquisas qualitativas. Sua matéria prima é
composta por um conjunto de substantivos cujos
sentidos se complementam: experiência, vivência,
senso comum e ação. E o movimento que informa
qualquer abordagem ou análise se baseia em três
verbos: compreender, interpretar e dialetizar .
O termo experiência utilizado historicamente
por Heidegger , diz respeito ao que o ser humano
apreende no lugar que ocupa no mundo e nas
ações que realiza. O sentido da experiência é a
compreensão: o ser humano compreende a si
mesmo e ao seu significado no mundo da vida .
Por ser constitutiva da existência humana, a experiência
alimenta a reflexão e se expressa na linguagem.
Mas, a linguagem não traz a experiência pura,
pois vem organizada pelo sujeito por meio da reflexão
e da interpretação num movimento em que
o narrado e o vivido por si estão entranhados na
e pela cultura, precedendo à narrativa e ao narrador.
Já a vivência é produto da reflexão pessoal
sobre a experiência. Embora a experiência possa
ser a mesma para vários indivíduos (irmãos
numa mesma família, pessoas que presenciam um
fato, por exemplo) a vivência de cada um sobre o
mesmo episódio é única e depende de sua personalidade,
de sua biografia e de sua participação
na história. Embora pessoal, toda vivência tem
como suporte os ingredientes do coletivo em que
o sujeito vive e as condições em que ela ocorre. O
senso comum pode ser definido como um corpo
de conhecimentos provenientes das experiências e
das vivências que orientam o ser humano nas
várias ações e situações de sua vida. Ele se
constitui de opiniões, valores, crenças e modos de
pensar, sentir, relacionar e agir. O senso comum
se expressa na linguagem, nas atitudes e nas condutas
e é a base do entendimento humano. Dado
o seu caráter de expressão das experiências e vivências,
o senso comum é o chão dos estudos
qualitativos. A ação (humana e social) pode ser
definida como o exercício dos indivíduos, dos grupos
e das instituições para construir suas vidas e
os artefatos culturais, a partir das condições que
eles encontram na realidade. O conceito de ação
está vinculado à noção de liberdade para agir e
transformar o mundo que, para Heidegger , não
constitui um lugar e sim um complexo formado
pela significação das experiências que fazem do
ser humano um ser histórico.
O verbo principal da análise qualitativa é compreender.
Compreender é exercer a capacidade de
colocar-se no lugar do outro, tendo em vista que,
como seres humanos, temos condições de exercitar
esse entendimento . Para compreender, é preciso
levar em conta a singularidade do indivíduo,
porque sua subjetividade é uma manifestação do
viver total. Mas também é preciso saber que a
experiência e a vivência de uma pessoa ocorrem
no âmbito da história coletiva e são contextualizadas
e envolvidas pela cultura do grupo em que
ela se insere. Toda compreensão é parcial e inacabada,
tanto a do nosso entrevistado, que tem um
entendimento contingente e incompleto de sua vida
e de seu mundo, como a dos pesquisadores, pois
também somos limitados no que compreendemos
e interpretamos. Ao buscar compreender é
preciso exercitar também o entendimento das
contradições: o ser que compreende, compreende
na ação e na linguagem e ambas têm como características
serem conflituosas e contraditórias pelos
efeitos do poder, das relações sociais de produção,
das desigualdades sociais e dos interesses.
Interpretar é um ato contínuo que sucede à
compreensão e também está presente nela: toda
compreensão guarda em si uma possibilidade de
interpretação, isto é, de apropriação do que se
compreende. A interpretação se funda existencialmente
na compreensão e não vice-versa, pois
interpretar é elaborar as possibilidades projetadas
pelo que é compreendido.
Segundo – Definir o objeto sob a forma de
uma pergunta ou de uma sentença problematizadora
e teorizá-lo. A indagação inicial norteia o
investigador durante todo o percurso de seu trabalho.
Sua reflexão analítica, neste momento, orienta-se
para o delineamento adequado do objeto
no tempo e no espaço: que não deve ser tão amplo
que permita apenas uma visão superficial e
nem tão restrito que dificulte a compreensão de
suas interconexões. A definição de um objeto não
reside na indagação em si, mas no seu esclarecimento
e contextualização por meio da teorização
que o torna um fato científico construído. É óbvio
que a clareza sobre o objeto – que nunca será
total e definitiva - só se alcança ao final de uma
pesquisa. Qualquer investigação nada mais é do
que a busca de responder à indagação inicial.
Como nos lembra Pascal, a conclusão de uma
obra já deve estar latente em sua formulação, pois
todas as coisas são causadas e causadoras.
Para tornar o objeto um construto científico
é preciso investir no conhecimento nacional e internacional
acumulado, dialogando com ele ou
em torno dele, caso não haja estudos sobre o
mesmo assunto, como ocorre nas investigações exploratórias. Feita a análise das fontes de pesquisa,
o investigador deve escolher o marco teórico que vai adotar, detalhando os conceitos, as
categorias e as noções que fazem sentido para
sua pesquisa. Este é o momento também de colocar
de forma mais fundamentada as hipóteses
ou os pressupostos que já existiam como intuição nas indagações iniciais.
Terceiro – Delinear as estratégias de campo. É
preciso ter em mente que os instrumentos operacionais
também contêm bases teóricas: são
constituídos de sentenças (no caso dos roteiros)
ou orientações (no caso da observação de campo)
que devem guardar estreita relação com o
marco teórico, sendo cada um desses elementos
um tipo de conceito operativo pensado na teorização
inicial.
Quarto – Dirigir-se informalmente ao cenário de pesquisa, buscando observar os processos
que nele ocorrem. É preciso ir a campo sem pretensões
formais e ampliar o grau de segurança
em relação à abordagem do objeto, inclusive, se
possível, realizar algumas entrevistas abertas,
promover o redesenho de hipóteses, pressupostos
e instrumentos, buscando uma sintonia fina
entre o quadro teórico e os primeiros influxos da
realidade. O olhar analítico deve acompanhar
todo o percurso de aproximação do campo.
Quinto – Ir a campo munido de teoria e hipóteses, mas aberto para questioná-las. É preciso
imergir na realidade empírica na busca de informações
previstas ou não previstas no roteiro inicial.
Conforme ensina Malinowski em seu clássico
trabalho sobre os princípios da abordagem
antropológica: é fundamental ter todo o material
teórico elaborado, todos os instrumentos operacionais
prontos e à disposição, como se o êxito da
investigação dependesse somente deles. Mas é
também crucial estar tão atento e tão aberto às
novidades do campo que, caso seja preciso, o investigador
abra mão de suas certezas a favor dos
influxos da realidade. Lembra Lévy-Strauss:
“O trabalho de campo é mãe e nutriz de toda
dúvida (...) antropológica que consiste em se saber
que nada se sabe, mas, também em expor o
que se pensava saber, às pessoas que [no campo]
podem contradizer [nossas verdades mais caras]”.
Num trabalho de campo profícuo, o pesquisador
vai construindo um relato composto por
depoimentos pessoais e visões subjetivas dos interlocutores,
em que as falas de uns se acrescentam
às dos outros e se compõem com ou se contrapõem
às observações. É muito gratificante
quando ele consegue tecer uma história ou uma
narrativa coletiva, da qual ressaltam vivências e
experiências com suas riquezas e contradições. Já nesse momento, o pesquisador pode articular as
informações que recebe como num quebra-cabeças,
e para enriquecê-las, buscar novos interlocutores
e fazer novas observações. É preciso
ressaltar que um relato coletivo não significa um
conto homogêneo e, sim, uma história em que
os diversos interesses e as várias visões tenham
lugar e possibilidade de expressão. Bertaux considera
que um bom trabalho de campo é ao mesmo
tempo a “construção de uma representação
do objeto socio antropológico”. Em resumo, o
trabalho de campo não é um exercício de contemplação.
Tanto na observação como na interlocução
com os atores o investigador é um ator
ativo, que indaga, que interpreta, e que desenvolve
um olhar crítico.
Sexto – Ordenar e organizar o material secundário
e o material empírico e impregnar-se
das informações e observações de campo. É preciso
investir na compreensão do material trazido
do campo, dando-lhe valor, ênfase, espaço e tempo.
Tendo em vista que a análise do material qualitativo
se apóia nos verbos e substantivos citados
no primeiro ponto do decálogo, qualquer
tentativa de realizá-la apenas tecnicamente empobrece
os resultados.
A ordenação constitui um trabalho organizativo: dos textos teóricos e referências que balizaram
o projeto e agora precisam ser complementadas; do material de observação, que geralmente
está contido no diário de campo, fonte legítima
de informação para compor a análise; dos documentos geográficos, históricos, estatísticos
e institucionais que porventura existam, que
foram pesquisados e que devem ajudar na contextualização
do objeto; das entrevistas, resultados
de grupos focais e de outras fontes primárias (que devem ter sido desgravadas caso a interlocução
tenha sido mediadas por gravações).
Os
elementos citados nos itens 1,2,3 são contextuais.
Os do item 4 dizem respeito ao conteúdo das falas
e das observações que a partir de então devem
ter prioridade numa leitura atenta, reiterativa e
cheia de perguntas. A esse movimento costumo
chamar de “impregnação” ou “saturação”.
Sétimo – Construir a tipificação do material
recolhido no campo e fazer a transição entre a
empiria e a elaboração teórica. O processo de tipificação
é mais denso e intenso que o exercício de
ordenação, mas tem a mesma finalidade: apropriação
da riqueza de informações do campo, tentando,
na medida do possível, não “contaminá-
lo” por meio de uma interpretação precipitada. É
preciso esclarecer que não existe uma mente vazia
de dados anteriores ou uma cabeça isenta de teorias
e ideologia. O esforço compreensivo tem o sentido de valorizar ao máximo os achados do
campo. Para isso é importante: (1) organizar os
relatos e os dados de observação em determinada
ordem. Por exemplo, caso a pesquisa empírica
tenha sido feita com grupos diferenciados por classe
social, por idade, por sexo, por religião, por
épocas históricas diferentes (todas essas divisões
são aqui hipotéticas), vários subconjuntos devem
ser criados, visando a uma leitura das homogeneidades
e das diferenciações para que seja possível fazer comparações entre os vários subconjuntos.
(2) As leituras horizontais de impregnação
dão lugar a uma elaboração transversal do conjunto
ou de cada subconjunto do material empírico, com uma intenção específica: recortar cada
item do texto, conforme foram apresentados pelos
entrevistados. Todo esse esforço de recorte e
colagem pode ser organizado tecnicamente em
subconjuntos ou gavetas, separados por assuntos,
constituindo já a primeira forma de classificação
do material; (3) em seguida, o pesquisador
dá um passo a mais na compreensão das estruturas
de relevância apresentadas pelos entrevistados.
O material contido nas muitas gavetas deve
passar por uma nova leitura e organização para
que seja rearrumado em quatro ou cinco tópicos
que os entrevistados destacaram, sobretudo, por
meio da reiteração. O esforço de síntese diminui o
número de subconjuntos, mas não despreza a riqueza
de informações. Apenas a reclassifica, enfatizando
quais são as estruturas de relevância apontadas
no estudo de campo. Dentro de cada tópico,
as questões devem ser tratadas em sua homogeneidade
e em suas diferenciações internas. O
movimento classificatório que privilegia o sentido
do material de campo não deve buscar nele
uma verdade essencialista, mas o significado que
os entrevistados expressam.
A esse momento fundamental em que pouco
a pouco o pesquisador chega ao sentido das falas
e de sua contextualização empírica denomino
lógica interna dos atores, do grupo, ou do segmento.
No momento em que compreender o sentido
do que lhe foi relatado e do que observou no
campo, o pesquisador não necessita mais estar
colado às falas: seu aprisionamento a elas é uma
das maiores fraquezas de quem faz análise qualitativa,
pois significa que o investigador não foi
capaz de ultrapassar o nível descritivo do seu
material empírico. Como nos lembra Canguillem:
A verdade só ganha sentido ao fim de uma
polêmica. Assim não poderia haver verdade primeira.
Só há erros primeiros. A evidência primeira
nunca é uma verdade fundamental.
Oitavo – Exercitar a interpretação de segunda
ordem. A compreensão propiciada pela leitura atenta, aprofundada e impregnante que deu
origem às categorias empíricas ou unidades de
sentido, nesse momento, deve merecer um novo
processo de teorização. Pode ocorrer que as referências
teóricas que constituíram balizas fundamentais
para o início da investigação não sejam
suficientes para contemplar a interpretação dos
achados de campo. Em forma de tópicos, no caso
de um artigo, ou de capítulos (no caso de elaboração
de um livro) cada uma das unidades de
sentido deve então merecer uma leitura de referências
nacionais e internacionais, de forma a
colocar o material classificado, no contexto das
questões nacionais e internacionais que ele suscita.
E igualmente, é importante enriquecer todo o
conjunto de falas e observações, com elementos
históricos e contextuais: para que de sua “aldeia”
o pesquisador converse com o mundo e sobre o
mundo, de forma compreensiva e crítica.
A interpretação nunca será a última palavra
sobre o objeto estudado, pois o sentido de uma
mensagem ou de uma realidade está sempre aberto
em várias direções. No entanto, quando bem
conduzida, ela deve ser fiel ao campo de tal maneira
que caso os entrevistados estivessem presentes,
compartilhariam os resultados da análise.
Gadamer acrescenta, recuperando o pensamento
de vários autores como Dilthey e Schleiermarcher,
que a interpretação deve ir além dos
entrevistados e surpreendê-los, pois quando eles
deram seus depoimentos, não tinham consciência
de tudo o que seria possível compreender, a
partir de suas falas, sobre seu tempo, seus contemporâneos
e sobre a sociedade em que vivem.
Nono – produzir um texto ao mesmo tempo
fiel aos achados do campo, contextualizado e accessível.
A conclusão de uma análise qualitativa
deve apresentar um texto capaz de transmitir informações
concisas, coerentes e, o mais possível,
fidedignas. Pois, o relato final da pesquisa configura
uma síntese na qual o objeto de estudo reveste,
impregna e entranha todo o texto. O contexto,
as determinações mais próximas e as mais
abstratas, nessa etapa do “concreto pensado”,
devem emanar do objeto e não ao contrário. Portanto,
consideramos um trabalho incompleto ou
pobre o que apenas descreve o que encontrou no
campo. Mas a compreensão e a interpretação em
seu formato final, também assinalam um momento
na práxis do pesquisador. Por isso, nunca
será uma obra acabada e suas conclusões devem
se abrir para novas indagações. Na sua exposição, é importante que o autor inclua suas condições e suas dificuldades de interpretação, pois
elas fazem parte da objetivação da realidade e de
sua própria objetivação.-
Décimo – Assegurar os critérios de fidedignidade
e de validade. Popper nos lembra que a
objetividade é uma questão social dos cientistas,
envolvendo a crítica recíproca, e “a divisão hostil-amistosa
de seu trabalho, sua cooperação ou
também sua competição”. Mas os critérios de
verificação devem ser assegurados, assim como
um certo apego do cientista a sua proposta e a
seus métodos, diz Popper, pois “se nos sujeitarmos
à crítica com demasiada facilidade, nunca
descobriremos onde está a verdadeira força de
nossas teorias”. No sentido de salvaguardar a
fidedignidade, sugerimos alguns passos:
(1) O
primeiro de todos é aquele que guia universalmente
toda pesquisa científica: teoria, método e
técnicas adequados, descritos e avaliáveis por
qualquer outro investigador.
(2) Por exigir presença,
envolvimento pessoal e interação do pesquisador
em todo o processo, uma boa análise
qualitativa deve explicitar suas ações no campo,
assim como seus interesses e dificuldades na construção
do objeto. Existem ainda alguns cuidados
possíveis de serem realizados durante o processo
de realização da investigação que lhe asseguram
maior grau de validade:
(3) a triangulação interna
à própria abordagem, que consiste em olhar
o objeto sob seus diversos ângulos, comparar os
resultados de duas ou mais técnicas de coleta de
dados e de duas ou mais fontes de informação,
por exemplo.
(4) A validação dos relatos, comparando
as falas com as observações de campo.
(5) O alerta para os relatos e os fatos que contradigam
as propostas e as hipóteses do investigador,
tratando de problematizá-los e de apresentá-los,
em lugar de ocultá-los. E a fidedignidade
aos vários pontos de vista, garantindo a
diversidade de sentidos expressos pelos interlocutores,
fugindo à idéia de verdade única.
Conclusões
Antes de terminar essas reflexões, gostaria de lembrar
que muitos artefatos tecnológicos têm sido
criados para a produção de análises qualitativas.
Há pesquisadores que os utilizam e certamente
encontram nele um importante apoio, como o
demonstra a obra de Pope e Mays.
Talvez por hábito de estar presente de forma
analítica e crítica em cada uma das etapas da investigação,
sinto muita dificuldade em terceirizar,
para tais dispositivos, a tarefa analítica, uma vez
que ela privilegia uma etapa apenas e não leva em
conta o contexto intersubjetivo indissociável e filosoficamente
fundamental para a pesquisa qualitativa
e, portanto, para o processo de análise Por isso, neste texto, toda a reflexão supõe a
presença e o acompanhamento do pesquisador
em cada passo do trabalho, num movimento ao
mesmo tempo somativo e de superação da fase
anterior. A implicação do investigador no trabalho
se constitui numa perspectiva circular: “ele só
conhece a realidade na medida em que a cria”.
Partindo dessa compreensão, considero que nem
um bom técnico-analista de conteúdo pode garantir
a qualidade de um texto final quando não
se dá conta das condições de sua produção.
O reconhecimento de que existe uma polaridade
complementar entre sujeito e objeto no processo
qualitativo de construção científica leva, por
sua vez, à necessidade de um esforço metodológico
que garanta a objetivação, ou seja, a produção
de uma análise o mais possível sistemática e aprofundada
e que minimize as incursões do subjetivismo,
do achismo e do espontaneísmo. Nesse sentido,
sem contradizer o que falei no parágrafo anterior,
é preciso valorizar as técnicas: para revisão
sistemática ou narrativa da indagação inicial, tornando-a um objeto pensado; para elaboração de
hipóteses coerentes com a pergunta e que possam
guiar o trabalho; para construção dos instrumentos
que devem traduzir os conceitos em itens observáveis
ou em guias para conversas no campo;
para elaboração de uma narrativa sobre o objeto
que ao mesmo tempo leve em conta a preparação
realizada cuidadosamente e a supere, trazendo
novas descobertas e relevâncias; para organizar,
categorizar, contextualizar e construir o relato final,
fruto sempre de uma análise provisória.
O percurso analítico e sistemático, portanto,
tem o sentido de tornar possível a objetivação de
um tipo de conhecimento que tem como matéria
prima opiniões, crenças, valores, representações,
relações e ações humanas e sociais sob a perspectiva
dos atores em intersubjetividade. Desta forma,
a análise qualitativa de um objeto de investigação
concretiza a possibilidade de construção
de conhecimento e possui todos os requisitos e
instrumentos para ser considerada e valorizada
como um construto científico.
Maria Cecília de Souza Minayo
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