3 de out. de 2017

Introdução da Formação em Saúde como Política Pública sob Controle Social


O papel de constatar a realidade e de produzir sentidos, no caso da saúde, pertence tanto ao SUS como às instituições formadoras de suas profissões. Cabe ao SUS e às instituições formadoras coletar, sistematizar, analisar e interpretar permanentemente informações da realidade, problematizar o trabalho e as organizações de saúde e de ensino, e construir significados e práticas com orientação social, mediante participação ativa dos gestores setoriais, formadores, usuários e estudantes.
Em publicação anterior, Ceccim (Ceccim e Bilibio, 2002) afirmava que, na formação que temos feito no Brasil a título de aprendizagem significativa, encontramos registro sobre a relevância da integração ensino - serviço.
 Mas praticamente inexiste o registro sobre a relevância e necessidade da integração ensino - serviço - gestão - controle social e a articulação com o movimento estudantil de graduação nas profissões da saúde. Afirmava também que ainda podem ser caracterizadas como inovadoras as experiências integradas entre gestores, formadores, usuários e estudantes, com o objetivo de qualificar a formação dos trabalhadores para as reais necessidades de saúde. A experiência acumulada de mudança na formação, dentro e fora do país, se centra na tríade instituições de ensino - instituições de serviço - associações científico profissionais, ou pela tríade ensino - serviço - comunidade (Feuerwerker, 2002, p. 280-285; Ceccim e Bilibio, 2002, p. 347).
Naquela publicação, como agora, se destaca que o componente serviço não pode se restringir à noção de práticas de atenção. Deve revelar uma estrutura de condução das políticas, a gerência do sistema e organização de conhecimentos do setor. Da mesma forma, a atenção não pode informar apenas o domínio de habilidades em fisiopatologia ou busca de evidências, recaindo sobre a alteridade com os usuários das ações e serviços de saúde e a produção de sentidos nos atos de cuidar, tratar e acompanhar, sejam problemas de saúde,seja a promoção de melhor qualidade de vida.
Propunha-se, na mesma publicação, o componente comunidade como algo diferente da interação com a população, pela introdução da noção de relevância e responsabilidade social do ensino
: á formação como um direito social e dever do Estado. 
A formação tecno profissional, a produção de conhecimento e a prestação de serviços pelas instituições formadoras somente fazem sentido quando têm relevância social. O ensino em saúde guarda o mandato público de formar segundo as necessidades sociais por saúde da população e do sistema de saúde, devendo estar aberto à interferência de sistemas de avaliação, regulação pública e estratégias de mudança.
Por último, no componente ensino, além do reconhecimento dos dirigentes e docentes como atores das instituições formadoras, destaca-se a articulação com o movimento estudantil, como ator político diferente das instituições formadoras. Seu protagonismo deve ser incentivado como movimento político de construção de inovações ao ensino e de sentido aos serviços de saúde.
 Dessa reflexão nasceu, em 2003, o conceito de quadrilátero da formação:
 ensino - gestão - atenção - controle social. 
A qualidade da formação passa a resultar da apreciação de critérios de relevância para o desenvolvimento tecno profissional, o ordenamento da rede de atenção e a alteridade com os usuários.
Por que é tão importante essa noção quadrilátera para a política de formação?
 Cada face libera e controla fluxos específicos, dispõe de interlocutores específicos e configura espaços-tempos com diferentes motivações. Então, ao disputar uma apreciação crítica da formação que fazemos e uma formação com vigor político para um processo de mudanças na realidade, nos deparamos com a necessidade de ativar certos processos e controlar outros.
 Formar sempre foi muito diferente de informar, mas parece que facilmente caímos nessa armadilha. Como formar sem colocar em análise o ordenamento das realidades? 
Como formar sem colocar em análise os vetores que forçam o desenho das realidades? 
Como formar sem ativar vetores de potência contrária àqueles que conservam uma realidade dada que queremos modificar?
Cada face comporta uma convocação pedagógica, uma imagem de futuro, uma luta política e uma trama de conexões. Cada interseção resulta em trajetos formativos postos em ato. Merhy (1994) percebe isso quando afirma que a busca da qualidade dos serviços de saúde está em aproveitar os ruídos do cotidiano dos serviços e colegiadamente reorganizar o processo de trabalho. 
Para Merhy (1997), não se pode admitir ou propor a captura do trabalho em saúde pela lógica dos saberes e práticas expressos nos equipamentos e técnicas estruturados. Podemos dizer que o objeto da saúde não é objetificável, que não pode ser reificado. Para Merhy, as tecnologias de ação mais estratégicas em saúde configuram processos de intervenção em ato, operando tecnologias de relações. O trabalho em saúde promove processos de subjetivação, está além de práticas e saberes tecnológicos estruturados.
Aspectos da Interinstitucionalidade e da Intra-institucionalidade na Ordenação da Formação para a Área da Saúde
Escolher uma perspectiva de análise que coloca em lugar central as responsabilidades institucionais com a qualidade dos serviços sob controle social permite propor que as instituições formadoras não possam existir independentemente de regulação pública e da direção política do SUS. Esse sistema está constitucionalmente comprometido com o ordenamento da formação e submetido ao controle social. Não pode, portanto, o ordenamento informar ações regulatórias de caráter formalista, administrativista ou de distribuição de vagas ou ritos burocráticos de autorização para a abertura de cursos.As instituições formadoras devem prover os meios adequados à formação de profissionais necessários ao desenvolvimento do SUS e a sua melhor consecução, permeáveis o suficiente ao controle da sociedade no setor, para que expressem qualidade e relevância social coerentes com os valores de implementação da reforma sanitária brasileira.
O controle social em saúde possui dois dispositivos importantes para orientar os sentidos da formação. Previstos em lei específica sobre a participação ativa da sociedade na direcionalidade do setor, esses dispositivos são os conselhos de saúde - instâncias de caráter permanente - e as conferências de saúde convocadas em intervalos de quatro anos (Côrtes, 2002). Os conselhos têm-se configurado desde a esfera nacional (Conselho Nacional de Saúde) até as esferas de serviço (Conselhos Gestores de Unidades/Programas), passando por esferas regionais, micro e macrorregionais, locais, distritais, municipais, estaduais etc.
O controle social não se contrapõe à autonomia das instituições formadoras, uma vez que essa autonomia não pode implicar independência das políticas públicas e da regulação de Estado, ou a desobrigação de prestar contas sobre a forma com que respondem aos interesses públicos e à tarefa social de formar as novas gerações de profissionais. A propalada autonomia não é uma soberania instituciona. Sendo a formação uma tarefa socialmente necessária, ela deve guardar para com a sociedade compromissos ético-políticos. Portadora de futuro, a formação não pode estar atrelada aos valores tradicionais, mas ao movimento de transformações na sociedade, e ser capaz de sofisticada escuta aos valores em mutação. Nesse sentido, a autonomia deve buscar, sempre, atender a interesses coletivos e à construção de novidade em saberes e em práticas.
Para a área da saúde, entretanto, a formação não apenas gera profissionais que possam ser absorvidos pelos postos de trabalho do setor. O trabalho em saúde é um trabalho de escuta, em que a interação entre profissional de saúde e usuário é determinante da qualidade da resposta assistencial.
 A incorporação de novidade tecnológica é premente e constante, e novos processos decisórios repercutem na concretização da responsabilidade tecnocientífica, social e ética do cuidado, do tratamento ou do acompanhamento em saúde. A área da saúde requer educação permanente.
A educação permanente parte do pressuposto da aprendizagem significativa (que promove e produz sentidos) e propõe que a transformação das práticas profissionais deva estar baseada na reflexão crítica sobre as práticas reais de profissionais reais em ação na rede de serviços (Haddad, Roschke e Davini, 1994).
 Portanto, os processos de qualificação do pessoal da saúde deveriam ser estruturados a partir da problematização do seu processo de trabalho. Seu objetivo deve ser a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho, tomando como referência as necessidades de saúde das pessoas e das populações, da gestão setorial e do controle social em saúde.
Para Haddad, Roschke e Davini (1994), considerando-se os textos organizados na coletânea sobre educação permanente em saúde, que empreenderam ao propor tal concepção e desafio de gestão estratégica setorial para a Organização Pan-Americana da Saúde, a formação profissional exige continuidade. Entretanto, enquanto a educação continuada aceita o acúmulo sistemático de informações e o cenário de práticas como território de aplicação da teoria, a educação permanente entende que o cenário de práticas informa e recria a teoria necessária, recriando a própria prática.
Uma formação, assim colocada, envolve a mudança das estratégias de organização e do exercício da atenção, que passam a ser problematizadas na prática concreta dos profissionais em terreno e dos quadros dirigentes. As demandas para educação em serviço não se definem somente a partir de uma lista de necessidades individuais de atualização, nem das orientações dos níveis centrais, mas prioritariamente a partir dos problemas da organização do trabalho, considerando a necessidade de prestar atenção relevante e de qualidade, com integralidade e humanização, e considerando ainda a necessidade de conduzir ações, serviços e sistemas com produção em rede e solidariedade intersetorial. É a partir da problematização do processo e da qualidade do trabalho - em cada serviço de saúde - que são identificadas as necessidades de qualificação, garantindo a aplicabilidade e a relevância dos conteúdos e tecnologias estabelecidas.
A lógica da educação permanente é descentralizadora, ascendente e transdisciplinar. Essa abordagem pode propiciar: a democratização institucional; o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, da capacidade de docência e de enfrentamento criativo das situações de saúde; de trabalhar em equipes matriciais e de melhorar permanentemente a qualidade do cuidado à saúde, bem como constituir práticas técnicas críticas, éticas e humanísticas.
Desse modo, transformar a formação e a gestão do trabalho em saúde não podem ser consideradas questões simplesmente técnicas, já que envolvem mudança nas relações, nos processos, nos atos de saúde e, principalmente, nas pessoas. São questões tecnopolíticas e implicam a articulação de ações para dentro e para fora das instituições de saúde, na perspectiva de ampliação da qualidade da gestão, do aperfeiçoamento da atenção integral, do domínio do conceito ampliado de saúde e do fortalecimento do controle social no sistema.
A ordenação da formação para a área da saúde como política pública afirma a perspectiva da construção de espaços locais, microrregionais e regionais com capacidade de desenvolver a educação das equipes de saúde, dos agentes sociais e de parceiros intersetoriais para uma saúde de melhor qualidade.
Em todos esses âmbitos, deverão ser trabalhados os elementos que conferem à “integralidade do atendimento de saúde” (diretriz constitucional) forte capacidade de impacto sobre a atenção à saúde. Estes são essenciais para a superação dos limites da formação e das práticas tradicionais de saúde:acolhimento, vínculo, responsabilização dos profissionais para com os problemas de saúde sob seu cuidado, desenvolvimento da autonomia dos usuários e resolutividade da atenção (Merhy e Onocko, 1997; Cecílio, 1994). 
A integralidade da atenção envolve a compreensão da noção de ampliação da clínica, o conhecimento sobre a realidade, o trabalho em equipe multiprofissional e transdisciplinar e a ação intersetorial. Completa a integralidade do atendimento, a noção de humanização (Kunkel, 2002), recuperando para a produção do conhecimento e configuração da formação, a reconciliação entre o conhecimento científico e as humanidades, entre ciência da saúde e arte da alteridade.
Serres (1993, p. IX)5 pergunta:
 “como aconteceu de as ciências humanas ou sociais não falarem jamais sobre o mundo, como se os grupos permanecessem no vazio (...). 
Como as ciências ditas duras deixam os homens de lado?”.
 O autor quer que nos interroguemos: “como nossos principais saberes se perpetuam hemiplégicos?”. Afirma que será preciso fazer com que os saberes aprendam “a caminhar com os dois pés, a utilizar as duas mãos”. 
Para Serres, essa mestiçagem designa corpos completados, ainda que cause horror “aos filósofos da pureza”. Como duas populações, de um lado as ciências sociais ou naturais, donde a saúde, e, de outro, as humanidades, donde a arte, a alteridade, as sensibilidades e os afetos. A atenção à saúde requer ambas, reconciliação, uma pedagogia mestiça (Ferla, 2002).
Para alcançar a atenção integral à saúde, com base nas necessidades sociais por saúde, a atenção básica cumpre um papel estratégico na dinâmica de funcionamento do SUS, por seu estabelecimento de relações contínuas com a população. Em todas as suas modalidades de operação, a atenção básica deve buscar a atenção integral e de qualidade, a resolutividade e o fortalecimento da autonomia das pessoas no cuidado à saúde, estabelecendo articulação orgânica com o conjunto da rede de serviços. Esta, entretanto, precisa incorporar a noção de Atenção Integral à Saúde, entendendo a rede de ações e serviços como “cadeia de cuidado progressivo à saúde” (Cecílio, 1997), onde não haja dicotomia entre os diversos âmbitos da rede única do SUS. A educação em serviço é uma proposta apropriada para trabalhar a construção desse modo de operar o sistema, pois permite articular gestão, atenção, ensino e controle social no enfrentamento dos problemas concretos de cada equipe de saúde em seu território geopolítico de atuação.
A educação permanente em saúde interpõe, nesta vertente, a reflexão crítica sobre as práticas assistenciais e de gestão.
 Pode-se/deve-se realizar a educação aplicada ao trabalho (capacitações tradicionais), mas também a educação que pensa o trabalho e a educação que pensa a produção do mundo. Em ambos os casos, podem-se/devem-se inserir fluxos à reflexão crítica.
Se a responsabilidade dos serviços de saúde no processo de transformação das práticas profissionais e das estratégias de organização da atenção à saúde levar ao desenvolvimento da proposta da educação em serviço, como um recurso estratégico para a gestão do trabalho e da educação na saúde, não se tratará de organizar um menu de cursos ou pacotes programáticos pontuais, mas sempre o ordenamento do processo formativo e a educação permanente em saúde. 
Muitas vezes, cursos necessários ao pessoal de serviços são ainda mais necessários ao pessoal docente para instalar sustentabilidade pedagógica locorregional, buscando fortalecer e levar para dentro da educação superior e profissional os valores éticos, técnicos, humanísticos e organizacionais aqui mencionados.
A interinstitucionalidade e a locorregionalização expressam a diversidade de atores sociais envolvidos no processo da educação permanente, quer seja como dirigentes, profissionais em formação, trabalhadores, usuários das ações e serviços de saúde ou estudantes. A partir deles é que se podem definir as exigências de aprendizagem em cada equipe, serviço e esfera de gestão.
A multiplicidade de interesses e pontos de vista existentes nos territórios locorregionais deixa clara também a necessidade de negociação e pactuação política nesse processo de estabelecimento de orientações concretas para a educação permanente em saúde. O núcleo central da política de formação para a área da saúde é constituído pela própria população. Suas necessidades sanitárias e mesmo de educação para a gestão social das políticas públicas de saúde devem ser contempladas, promovendo-se o desenvolvimento da autonomia diante das ações, dos serviços e dos profissionais de saúde. Para que sejam identificados os efeitos das ações desenvolvidas, deve-se prever mecanismos de avaliação dos processos de educação permanente em saúde, bem como mecanismos de monitoramento que possibilitem ordenar e/ou reordenar cada articulação interinstitucional na política de formação para a área da saúde. 
A avaliação, segundo Silva e Brandão (2003), tem a capacidade de forjar novas organizações e novas realidades a partir da realidade avaliada, colocando os programas sob avaliação em processo de geração de conhecimento e de práticas.
A avaliação e o monitoramento deverão considerar como condição relevante a territorialização política e social das necessidades em saúde, de modo a permitir a compatibilização da formação com as intervenções epidemiológicas, demográficas e culturais necessárias em cada população territorializada. Ao eleger as necessidades em saúde e a cadeia do cuidado progressivo à saúde como fatores de exposição às aprendizagens e para o processo de educação permanente, os diversos atores em formação deverão desenvolver novas propostas pedagógicas, que sejam capazes de mediar a construção do conhecimento e dos perfis subjetivos, nessa perspectiva.
Serão necessários novos mecanismos de planejamento e gestão para que os serviços possam ser espaços de aprendizagem. Especial atenção deve ser dada à formulação de novos pactos de trabalho, capazes de absorver as demandas de cuidado às pessoas e populações, o ensino e a produção do conhecimento nos espaços locais e no conjunto da rede de atenção à saúde. 
Na perspectiva da educação permanente e da significação dos processos de formação pelas necessidades sociais em saúde, integralidade do atendimento e rede de cuidados, é necessário que as instituições formadoras também realizem importantes iniciativas inovadoras na área do planejamento e da gestão educacionais.
Articulações interinstitucionais precisam ser providenciadas e apoiadas pelo SUS, para que a educação permanente em saúde constitua espaços de planejamento, gestão e mediação. E ainda para que as diretrizes políticas de ordenação da formação na área da saúde se materializem de forma agregadora e com direcionalidade pelo interesse público, em sintonia com as peculiaridades locorregionais.
O conjunto de atores envolvidos se constituirá como interlocutor permanente nos diálogos necessários à construção das propostas e das correções de trajetória se dispositivos de gestão e controle social forem organizados. Na experiência brasileira, apresentada pelo Ministério da Saúde, isso passou a ser designado, em 2003, como Pólos de Educação Permanente em Saúde (Portaria Ministerial no 198/2004).
RICARDO BURG CECCIM e  LAURA C. M. FEUERWERKER 
O Quadrilátero da Formação para a Área da Saúde: Ensino, Gestão, Atenção e Controle Social

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