3 de out. de 2017

O Quadrilátero da Formação : Ensino, Gestão, Atenção e Controle Social

Este ensaio pretende situar a formação dos profissionais de saúde como um projeto educativo que extrapola a educação para o domínio técnico-científico da profissão e se estende pelos aspectos estruturantes de relações e de práticas em todos os componentes de interesse ou relevância social que contribuam à elevação da qualidade de saúde da população, tanto no enfrentamento dos aspectos epidemiológicos do processo saúde-doença, quanto nos aspectos de organização da gestão setorial e estruturação do cuidado à saúde. Assentado sobre o desafio da gestão pública do setor da saúde, de ordenar políticas de formação, como prevê a Constituição Nacional no Brasil, o texto registra um movimento analítico sobre uma prática em experimentação.
A prática em experimentação aqui referida é a formulação de uma política pública apresentada pelo Ministério da Saúde para a educação dos profissionais, sustentada nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e proposta para implementar processos com capacidade de impacto no ensino, na gestão setorial, nas práticas de atenção e no controle social em saúde.
A formação dos profissionais de saúde tem permanecido alheia à organização da gestão setorial e ao debate crítico sobre os sistemas de estruturação do cuidado, mostrando-se absolutamente impermeável ao controle social sobre o setor, fundante do modelo oficial de saúde brasileiro. As instituições formadoras têm perpetuado modelos essencialmente conservadores, centrados em aparelhos e sistemas orgânicos e tecnologias altamente especializadas, dependentes de procedimentos e equipamentos de apoio diagnóstico e terapêutico (Feuerwerker, 2002; Feuerwerker, Llanos e Almeida, 1999).
Merhy (1997, p. 71-72) coloca que justamente o modo como se estruturam e são gerenciados os processos de trabalho configuram “um dos grandes nós críticos” das propostas que apostam na mudança do modelo tecn oassistencial em saúde no Brasil, “que se tem mostrado comprometido com muitos tipos de interesse, exceto com a saúde dos cidadãos” . 
Uma das características que dá ao SUS singularidade histórica e internacional é que, no Brasil, a participação popular não é para a avaliação do grau de satisfação com a atenção, para a cooperação ou extensão comunitária, para a organização de programas de educação para a saúde ou consultiva. No Brasil, a população tem assento nas instâncias máximas da tomada de decisões em saúde, por isso a denominação controle social dada à participação da sociedade no SUS (Côrtes, 1996a; 1996b). Controle social, no sistema de saúde brasileiro, quer dizer direito e dever da sociedade de participar do debate e da decisão sobre a formulação, execução e avaliação da política nacional de saúde.
Campos (2003, p. 9) coloca que o trabalho das equipes e das organizações de saúde “deve apoiar os usuários para que ampliem sua capacidade de se pensar em um contexto social e cultural”. 
Para o autor, “isto poderia ser realizado tanto durante as práticas clínicas quanto as de saúde coletiva”. O que Campos defende é que “caberia repensar modelos de atenção que reforçassem a educação em saúde, objetivando com isso ampliar a autonomia e a capacidade de intervenção das pessoas sobre suas próprias vidas”.
A prática em experimentação, submetida aqui ao ensaio textual, acolhe como exigência política um sistema de gestão que, ao mesmo tempo, ofereça propostas de transformação das práticas profissionais, baseando-se na reflexão crítica sobre o trabalho em saúde e a experimentação da alteridade com os usuários. Permite, assim, que o quotidiano de relações da organização da gestão setorial e estruturação do cuidado à saúde se incorpore ao aprender e ao ensinar, formando profissionais para a área da saúde, mas formando para o SUS.
A formação não pode tomar como referência apenas a busca eficiente de evidências ao diagnóstico, cuidado, tratamento, prognóstico, etiologia e profilaxia das doenças e agravos. 
Deve buscar desenvolver condições de atendimento às necessidades de saúde das pessoas e das populações, da gestão setorial e do controle social em saúde, redimensionando o desenvolvimento da autonomia das pessoas até a condição de influência na formulação de políticas do cuidado.
A atualização técnico-científica é apenas um dos aspectos da qualificação das práticas e não seu foco central. 
A formação engloba aspectos de produção de subjetividade, produção de habilidades técnicas e de pensamento e o adequado conhecimento do SUS. A formação para a área da saúde deveria ter como objetivos a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho, e estruturar-se a partir da problematização do processo de trabalho e sua capacidade de dar acolhimento e cuidado às várias dimensões e necessidades de saúde das pessoas, dos coletivos e das populações.
Crítica à Formação para a Saúde que Temos Feito no Brasil
Em nosso país, o setor da saúde vem sendo submetido a um significativo processo de reforma de Estado, protagonizado por importantes segmentos sociais e políticos, cuja ação é fundamental à continuidade e ao avanço do movimento pela Reforma Sanitária, bem como para a concretização do SUS. 
Por essa razão, as várias instâncias do SUS devem cumprir um papel indutor no sentido da mudança, tanto no campo das práticas de saúde como no campo da formação profissional.
No setor do ensino, entretanto, revela-se necessário e urgente semelhante movimento social por uma Reforma da Educação que expresse o atendimento dos interesses públicos no cumprimento das responsabilidades de formação acadêmico-científica, ética e humanística para o desempenho tecno profissional.
 Deve expressar ainda a produção de conhecimento e promoção de avanços nos campos científico, tecnológico e cultural e prestação de serviços, principalmente de cooperação e assessoramento técnicos, de retaguarda e avaliação tecnológica e de documentação e disseminação dos saberes produzidos nos serviços, nos movimentos sociais e nas práticas populares.
O SUS tem assumido papel ativo na reorientação das estratégias e modos de cuidar, tratar e acompanhar a saúde individual e coletiva. Tem sido capaz de provocar importantes repercussões nas estratégias e modos de ensinar e aprender sem que, entretanto, se tenha formulado uma forte potência aos modos de fazer formação. No máximo se interpuseram fatores críticos, ao se revelar a necessidade de re-formar os profissionais para atuar no SUS.
 Formados estavam para atuar onde?
De fato, muitas iniciativas do setor propiciaram o desenvolvimento de um certo pensamento crítico e estimularam o fortalecimento do movimento por mudanças no processo de formação. 
Programas como os de Interiorização do Trabalho em Saúde (Pits), 
de Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed),
 de Capacitação e Formação em Saúde da Família, de Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem (Profae), 
de Aperfeiçoamento ou Especialização de Equipes Gestoras
, de Formação de Conselheiros de Saúde, entre outros, 
caminharam nessa direção e possibilitaram a mobilização de pessoas e instituições, no sentido de uma aproximação entre instituições formadoras e ações e serviços do SUS.
Após uma seqüência de rodadas de avaliação, efetuadas de fevereiro a julho de 2003, com coordenadores, gestores municipais e estaduais e docentes universitários, pode-se formular que todas essas iniciativas foram muito tímidas na sua capacidade de promover mudanças nas práticas dominantes no sistema de saúde.
 Limitadas a introduzir mudanças pontuais nos modelos hegemônicos de formação e cuidado em saúde, mantiveram a lógica programática das ações e não conseguiram desafiar os distintos atores para uma postura de mudança e problematização de suas próprias práticas.
 Por se apresentarem de forma desarticulada ou fragmentada e corresponderem a orientações conceituais heterogêneas, as capacidades de impacto das ações do SUS em educação têm sido muito limitadas, no sentido de alimentar os processos de mudança sobre as instituições formadoras, e nulas em apresentar a formação como uma política do SUS: potência de interpor lógicas, diretrizes e processos organizados, coerentes e desafiadores dos modos de fazer.
Roubando uma idéia de Deleuze (1992, p. 7), poderíamos afirmar que a formação como política do SUS poderia se inscrever como uma “micropotência” inovadora do pensar a formação, agenciamento de possibilidades de mudança no trabalho e na educação dos profissionais de saúde e invenção de modos no cotidiano vivo da produção dos atos de saúde.
Uma proposta de ação estratégica para transformar a organização dos serviços e dos processos formativos, as práticas de saúde e as práticas pedagógicas implicaria trabalho articulado entre o sistema de saúde (em suas várias esferas de gestão) e as instituições formadoras.
 Colocaria em evidência a formação para a área da saúde como construção da educação em serviço/ educação permanente em saúde: agregação entre desenvolvimento individual e institucional, entre serviços e gestão setorial e entre atenção à saúde e controle social.
A necessária aproximação entre construção da gestão descentralizada do SUS, o desenvolvimento da atenção integral como acolhida e responsabilidade do conjunto integrado do sistema de saúde e o fortalecimento da participação popular com características de formulação política deliberativa sobre o setor características fundantes de uma educação em serviço - têm ficado relegadas à condição de produto secundário quando interrogamos as relações entre educação dos profissionais e trabalho no SUS.
De produto secundário, a implementação das diretrizes constitucionais do SUS deveria passar a objetivo central e a educação em serviço ganhar estatuto de política pública governamental. 
De outra parte, as instituições formadoras, mediadas pelo Estado, deveriam demonstrar a relevância pública de seu projeto político-pedagógico e os significados que emprestam à produção de conhecimento e prestação de serviços e, assim, permitir o julgamento, pela sociedade, do cumprimento de suas funções públicas, igualando-se ao SUS ao reconhecer o direito de controle da sociedade sobre a gestão pública do ensino.

RICARDO BURG CECCIM e  LAURA C. M. FEUERWERKER


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