4 de out. de 2017

Políticas de Descentralização e Cidadania: Novas Práticas


O projeto de descentralização em saúde surgido no Brasil nos anos 50 é retomado, em termos de política pública, no início da década de 80, com a crise das políticas sociais do Estado militar , que durou duas décadas. Aqui se fala em retomada, porque os atores são essencialmente os mesmos do período anterior (burocracia e profissionais da área de saúde e previdência) e o modelo é basicamente o mesmo – sanitarista e desenvolvimentista, embora atualizado.
 A novidade, em termos políticos, é que a nova “descentralização” incorpora aos poucos o projeto dos serviços locais de saúde (SILOS), elaborado pelos organismos internacionais da ordem sanitária (OMS/OPS) nos anos 70. Também cresce a idéia de participação em direção à sociedade civil, aos “usuários” dos serviços, em vez da idéia de “comunidade”, tão cara aos anos 60. Programas de descentralização municipal de serviços são estruturados na primeira metade dos anos 80, em acordo com prefeituras simpatizantes das idéias de descentralização e de priorização dos serviços básicos de saúde. Essas experiências continuam após o período de transição democrática (1975), com a política de saúde da Nova República e a criação do Serviços Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS), e serão o laboratório do projeto Sistema Único de Saúde (SUS), que chegará praticamente pronto à VIII Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, em 1986, para onde convergiram mais de três mil pessoas, fato inédito na história dessas conferências. 
É necessário esclarecer que a década de 80 foi palco de uma progressiva movimentação social em torno das políticas públicas, principalmente a de saúde, que passou a ser vista pela sociedade civil organizada (associações, organizações civis, sindicatos e partidos) como direito de cidadania. Houve a formação de movimentos populares em torno das questões centrais das políticas de saúde (universalização, hierarquização e acessibilidade em relação aos serviços), bem como grande participação de grupos organizados locais (“comunitários”) nas Conferências de Saúde (estaduais, municipais), fruto da importância que toma essa questão na política da conjuntura. É importante ressaltar que a movimentação da sociedade civil teve papel inegável na aceitação política das propostas da VIII Conferência Nacional de Saúde, em grande parte consubstanciadas no SUS. 
Pela primeira vez, se pode falar numa política pública no país, que busca, ao menos no seu discurso, a descentralização e a desconcentração, em proveito de instâncias intermediárias de poder institucional e sob controle social do cidadão, através de participação em conselhos (estaduais, municipais e locais) destinados a este fim. A saúde tornou-se a vanguarda das políticas públicas nessa questão. Entretanto, grande parte desse instrumento de descentralização política ficou sem regulamentação até o fim dos anos 80.
 Quando se iniciou a década de 90, os ventos políticos sopraram a favor do neoliberalismo, com a eleição de Collor . Começava ali um processo de desmonte de políticas públicas construídas não apenas na década anterior mas em outras, recuando-se até o governo de Getúlio Vargas e a política previdenciária dos anos 30. É inegável a complexificação dos contrastes e problemas crônicos da sociedade brasileira na última década, em todos os níveis – econômico, social, político e cultural –, resultante não apenas do estilo de crescimento econômico e desenvolvimento social do país, mas também do processo conhecido como globalização. A endêmica concentração de riqueza, aliada ao crescente desemprego, piorou sensivelmente com a política econômica de ajuste fiscal adotada pelos governos da década, passando a economia brasileira, como a de outras do continente, a ser “monitorada” por organismos financeiros mundiais, como o FMI e o Banco Mundial. Foram implantadas nas economias periféricas políticas econômicas internacionais monetaristas centradas no “setor externo”, para as quais a expansão interna da produção e do emprego nas nações forçadas a adotá-las têm pouca significação frente ao controle da dívida externa, do equilíbrio fiscal, da balança de pagamentos e da “força” da moeda. 
O processo de implantação desse modelo em nosso país, iniciado no Governo Collor, ampliou-se e consolidou-se nos dois períodos do Governo FHC A conseqüência dessas políticas tem sido o empobrecimento dos povos dos países  de Terceiro Mundo ou “emergentes”, que acontece numa escala e com uma rapidez jamais presenciada no capitalismo. Multidões de pobres são continuamente jogadas nas ruas desses países, pelo desemprego, pelo encarecimento da moradia, pelas doenças, pela velhice sem amparo devido a uma aposentadoria insuficiente. São populações vistas como “descartáveis”, como acentuaram estudiosos da questão da transformação do regime de trabalho e das condições sociais no capitalismo mundializado, inaugurando uma triste nomenclatura incorporada pela mídia. A perda de status e de capacidade de consumo, com inevitável declínio econômico e social das camadas médias tradicionais (pequenos comerciantes, comerciários, profissionais liberais, bancários, funcionários públicos civis e militares) é outro subproduto inegável do processo de mudança na economia em plano nacional e internacional, conhecido como globalização.
 Nesse contexto, os jovens dificilmente encontram lugar no núcleo dinâmico do sistema de produção, independentemente de sua qualificação (evidentemente, quanto menos qualificado o jovem, terá menor probabilidade de ter um emprego e será mais atraído para o mundo do crime e do tráfico de drogas); os maduros são expulsos de seus empregos pelo encolhimento dos postos de trabalho, sobretudo na indústria; os que perdem o emprego têm grande dificuldade em voltar para o sistema. Como conseqüência, a economia informal acaba atingindo praticamente 50% do volume da atividade econômica. Todos esses fatos, conhecidos não apenas dos estudiosos das condições de vida da sociedade brasileira, mas da opinião pública, são mencionados aqui para chamar a atenção para a importância que terão como resultado final em termos de aumento de demanda de atenção médica, uma vez que atingem duramente a população, sobretudo em termos de saúde mental, motivando uma verdadeira crise na estrutura de atendimento da saúde pública. A proposta do Estado neoliberal, como estratégia, é encolher-se ao nível mínimo, deixando em mãos privadas, filantrópicas ou voluntárias, às quais faz apelos constantes de “participação” e “parceria”, atividades concernentes ao setor social, secularmente definidas como funções públicas essenciais. Também por isso essa forma de Estado tem sido denominada entre nós de neoliberal, como alusão ao Estado liberal clássico do fim do século XIX e da Primeira República, ou República Velha, no início do século XX.
O Estado neoliberal nos tem governado e dominado nos últimos dez anos, e temos ciência do que tem sido sua política de saúde: corte de verbas, desmonte do setor público, desvio de verbas destinadas à saúde para outros gastos etc. Não pretendo deter-me nesses aspectos, ampla e cotidianamente debatidos e denunciados por economistas, cientistas políticos, sanitaristas e pela mídia. Limito-me a analisar, ainda que brevemente, o que essa política implica em relação às questões centrais destas páginas, isto é, a questão da polaridade centralização/descentralização, da cidadania e das práticas em saúde na sociedade civil. Em aparente paradoxo, o Estado neoliberal tende a favorecer a descentralização. Digo aparente porque, no plano financeiro, os governos neoliberais tendem a centralizar os recursos da União, que passam a ser controlados por sua equipe econômica, através da concentração dos mesmos nos ministérios ligados à economia, e a exercer sobre as unidades da federação (estados e municípios) um controle férreo, estabelecendo um conjunto de regras contábeis para o repasse dos recursos provenientes dos impostos a essas unidades. No desenvolvimento desta lógica de “repasses”, a partir de um certo ponto, o poder central passa a agir como um agente financeiro em relação a essas unidades, “emprestando-lhes” os recursos necessários para obras de investimento, custeio, folha de salários etc. Como conseqüência, os estados e municípios não apenas passam a depender do poder central para desempenhar a contento suas atividades, como tendem a endividar-se para além do que permitiriam as receitas provenientes de suas unidades, criando um círculo vicioso semelhante ao que enfrenta o próprio Estado nacional face aos organismos financeiros internacionais. Deste ponto de vista, o Estado neoliberal é o mais centralista de todos os que a República brasileira pôde conhecer. 
Do ponto de vista da concentração do poder político, esse tipo de centralização enseja formas de manipulação e corrupção também inéditas no país, pois, através do controle dos recursos, o poder central negocia, desvia, cerceia ou libera as verbas em princípio destinadas a setores sociais básicos, como saúde e previdência social, chegadas ao nível da emergência. Os poderes Legislativo e Executivo, nos níveis estadual e municipal, acabam tornando-se reféns dessa política, assistindo o país atônito e deprimido ao balcão de “negociações” corporativas das verbas públicas em que se transformaram as relações entre os poderes da República. Por outro lado, o núcleo central do Estado faz o que pode para se livrar do ônus político, social e econômico que representam saúde e previdência, transferindo para unidades periféricas as funções e, sobretudo, as responsabilidades concernentes a essas funções. Esta delegação, prevista num instrumento de descentralização de política pública, como é o SUS, torna-se uma forma de o Estado central “desincumbir-se” de funções que lhe são constitucionalmente atribuídas. Entretanto, o “repasse” dos recursos necessários para o desempenho dessas funções não se faz no mesmo ritmo nem com a mesma presteza com que são repassadas as obrigações. 
Desta forma, se quisesse resumir numa formulação clara e simples a política de descentralização da saúde dos governos neoliberais da última década, poderia dizer que esta tem consistido em transferir (“delegar”) funções para unidades estatais territorialmente menores (estados, municípios e locais), no sentido de delas poder “cobrar” responsabilidades referentes às funções delegadas com o menor dispêndio político e financeiro possível. 
Esta tem sido basicamente a estratégia de descentralização do Estado neoliberal. Evidentemente, esta é uma das perspectivas políticas envolvidas na questão da descentralização da política de saúde, embora seja a que mais pesa em termos de conseqüências para a sociedade civil e para a nação como um todo, considerada a importância do ator político envolvido nessa perspectiva.
 Mas há também as perspectivas de outros atores, presentes em conjunturas anteriores, como os profissionais e as burocracias da área de saúde, e a sociedade civil, que merecem ser analisadas. Além disso, novos atores que crescem na conjuntura dos anos 90 precisam ser colocados em exame para que se tenha uma visão mais global e nítida da complexidade do problema. 
Em primeiro lugar, cabem algumas palavras sobre os atores tradicionais da discussão do processo centralização/descentralização nas políticas de saúde. Refiro-me aqui aos profissionais (médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas e assistentes sociais) e a certos setores da burocracia da área de saúde (Ministério da Saúde e da Previdência Social). Creio que esses atores evoluíram de uma visão corporativa estrita (portanto particularista) para uma visão mais democratizante (portanto mais universalista) durante os anos 90, na medida em que passaram a ter uma interlocução com a sociedade civil organizada (associações, organizações, sindicatos, setores de partidos etc.) e advogaram muitas vezes sua participação no planejamento e na gestão (“controle social”) dos serviços de atenção primária à saúde, através de conselhos integradores de sua representação. Mais que isso: foram em geral esses atores – o que não quer dizer sempre, pois resistências houve e ainda hoje há muitas — que propuseram e fizeram implantar tais Conselhos nas Secretarias de Saúde nos diversos níveis (local, municipal e estadual). Profissionais e burocratas, incluindo os gestores, são, portanto, uma força política que tem atuado no interior do Estado (nas instituições estatais de saúde) ou na periferia do Estado (nas instituições corporativas de saúde), no sentido de produzir um movimento de desconcentração do poder estatal “de dentro para fora”, num processo de descentralização através do favorecimento da co-gestão institucional em todos os níveis territoriais (local, municipal, estadual e central), confirmando mais uma vez a teoria de que as instituições, mais que simples reprodução do Estado, são contraditórias e funcionam como campo de luta política. 
Neste sentido, devem-se considerar profissionais e burocratas da área de saúde como vanguarda da descentralização e da desconcentração institucional no interior das políticas públicas brasileiras, nos últimos 15 anos. Sua estratégia tem servido de modelo para outras áreas sociais, como a educação. Em seguida, cabe considerar o efetivo avanço de movimentos populares e de organizações da sociedade civil, desde a segunda metade da década de 80, no sentido de reivindicar participação no planejamento e na gestão (“controle social”) dos serviços de saúde. Esse avanço tem caminhado da periferia para o centro, em termos territoriais e políticos, isto é, do local para o central. Os municípios e localidades são o grande eixo de mobilização pela descentralização em direção às Secretarias Estaduais de Saúde e ao poder central, no Ministério da Saúde. 
Além das organizações e associações locais comunitárias, atuantes desde o início dos anos 80, cabe assinalar, na década de 90, o surgimento e desenvolvimento participativo das organizações não governamentais (ONGs) e dos agentes comunitários de saúde, ambos com impacto na movimentação política civil que envolve a questão da saúde. Assim, a participação efetiva da sociedade civil nas políticas de saúde, resultante do entrosamento entre organizações civis e setores institucionais (profissionais, burocratas e gestores) tem variado de acordo com a cultura político-partidária dominante nos governos de nível municipal ou – às vezes – estadual, e tem sido um elemento concreto de desconcentração do poder estatal atuando “de baixo para cima”, embora ainda limitado a poucos estados e municípios. Poder-se-ia dizer que esse entrosamento produtivo de participação constitui fator de democratização da política de saúde. Evidentemente essa pressão democratizante pode encontrar reação mais ou menos positiva, com maior ou menor intensidade da parte do poder público.
No que concerne ao governo central, essa reação tem sido praticamente nula, em função da natureza das políticas públicas restritivas vigentes no governo neoliberal, que não ultrapassam o nível de assistência, emergencial aos mais necessitados. No que concerne ao Estado, visto como conjunto de esferas de governo, é preciso assinalar sua grande diversificação interna em direção ao local, operada na década de 90, com a expansão dos municípios e o crescimento do peso dos governos municipais, através da expansão das prefeituras (e de suas secretarias). Um dado significativo desse crescimento é a organização dos prefeitos em nível de associação nacional, bem como das câmaras legislativas, dando origem ao que se poderia denominar de um associativismo público inédito no país. 
Os municípios necessitam se unir na atualidade, em termos de poder público, para fazer face ao poder central, no sentido de obter recursos orçamentários para suas atividades e evitar o colapso fiscal por endividamento. 
Quero acentuar aqui que um novo ator político consolidou-se na década de 90 em relação à questão da centralização x descentralização das políticas públicas, e esse ator tende a ganhar importância, na medida em que cresce seu peso na balança política, através das eleições. Neste sentido, afirmo que também o poder municipal tende a ser nos próximos anos uma esfera de governo que pressiona o Estado central “de baixo para cima”, no sentido da descentralização/desconcentração das políticas públicas em geral, e em especial das políticas de saúde, em função do dispositivo descentralizador representado pelo SUS, fortalecendo direitos sociais de cidadania e a inclusão da sociedade civil no Estado. Entretanto, devem-se levar em consideração as forças políticas que atuam em sentido contrário a essa tendência. Além da própria estrutura do Estado na conjuntura atual e das políticas que dela decorrem, existem os interesses de privatização, organizados desde os anos 70, transformados em lobbies, nos anos 80, e em poderoso ator político nos anos 90: laboratórios farmacêuticos, corporações médico-hospitalares, seguros e serviços privados de saúde, chegados ao nível de atividade financeira, em geral cartelizados. Essas forças sociais têm forte presença em todos os níveis e esferas governamentais e pressionam fortemente o Estado no sentido de seus interesses. O Estado, por sua vez, tende a privatizar seus serviços e a limitar se a ser apenas um regulador do mercado em relação a preços e qualidades de serviços e produtos oferecidos à população na área de atenção médica. Desta forma, as forças socialmente dominantes tendem a se complementar e a tensionar as forças que atuam no sentido da descentralização e desconcentração das políticas de saúde. Deve-se assinalar, entretanto, o forte interesse do Estado central em transferir funções e serviços para sua periferia, em termos territoriais e de esferas de governo (serviços de saúde em nível local), o que tem tido efeitos descentralizadores em relação à política de saúde. Foram criadas regulamentações assegurando a efetiva transferência, inclusive em plano financeiro, dentre as quais se destacam as Normas Operacionais Básicas (NOB), editadas durante a década de 90. 
A regulamentação de Conselhos de Integração de gestão institucional, em níveis municipal e estadual, iniciada nos anos 80 sem grande adesão, também se desenvolveu nesse período, superando aos poucos o tradicional isolamento institucional no plano da gestão e do desenvolvimento de programas. Deste modo, pode-se dizer que na década de 90 houve descentralização na política de saúde brasileira, se entendida como delegação de funções ou transferência de ações (e sua gestão) para níveis territoriais menores e periféricos do sistema (municípios e localidades).
 Mas, se considerada a concentração dos recursos na esfera central de governo, o férreo controle contábil exercido sobre os níveis periféricos e a priorização de determinados programas verticais – não necessariamente coerentes com os escolhidos como prioritários em nível municipal –, pode-se dizer que se trata até o momento de uma descentralização incompleta, que às vezes chega a inviabilizar, por insuficiência de recursos, o funcionamento de programas e serviços locais, sobrecarregando os profissionais de saúde e responsabilizando-os, às vezes de maneira espalhafatosa, pelas falhas resultantes do estrangulamento do sistema de atenção à saúde. Finalmente, se houve descentralização na política de saúde brasileira na década encerrada, não houve – e nem poderia haver, considerando-se a composição atual do Estado e sua política dominante – desconcentração. A pressão de setores da sociedade civil, profissionais e burocracia, bem como do poder público em nível municipal, entretanto, é constante e tende a crescer com o papel do local na política estatal nos anos vindouros. Isso pressionará o Estado no sentido de implantar descentralização com desconcentração institucional de poder, forçando a política de saúde a avançar no sentido das demandas da sociedade.
Quando se avança, aliás, na direção das práticas e representações de saúde da sociedade civil brasileira  –  isto é, dos indivíduos, grupos e coletividades que a compõem  – , deve-se mencionar a multiplicidade e a diversidade de modelos, discursos, práticas e representações presentes, ligados a saberes tradicionais ou atuais, a sistemas médicos complexos (como os sistemas tradicionais indígenas) ou a terapias descoladas de uma racionalidade médica específica e justapostas a outras, originárias de contextos culturais diferentes dos da “colagem” efetuada. Diversidade, fragmentarismo, colagem (ou, se preferirmos a expressão cunhada por Lévi-Strauss, bricolage), hibridismo e sincretismo, características culturais atribuídas à pós-modernidade, estão seguramente presentes no grande mercado social da saúde contemporânea. Aqui a positividade da representação de saúde ganhou força nos últimos 30 anos, face a uma visão até então dominante de saúde como normalidade / ausência de doença, ou capacidade / incapacidade de trabalhar ou de desempenhar atividades. Voltarei a esse tema mais adiante. 
No momento, creio ser mais importante discutir o porquê da “unanimidade” da saúde.
 Por que a “saúde” é tão importante na cultura atual, a ponto de podermos nos referir a ela como “a nova utopia”? 
Acredito que se pode começar pelo custo social que a saúde passou a representar para os indivíduos, as famílias, o Estado e a sociedade civil nos últimos 20 anos. Adoto essa hipótese, macroanalítica, como uma hipótese interpretativa com função de elemento teórico de contextualização socioeconômica. Ela não é suficiente, entretanto, para explicar a pluralidade de sentidos e significados, de representações sociais e práticas sintetizados na categoria saúde presentes na sociedade atual. Pluralidade que remete à complexidade do universo simbólico presente na cultura atual. Nele a diversidade de atribuições de sentidos e significados, de representações, adoção de identidades individuais e coletivas no campo da saúde gera o que denomino monólito simbólico da saúde. No universo simbólico contemporâneo há um conjunto de representações relativas aos valores dominantes na sociedade, como o individualismo (a compreensão dos sujeitos como unidades pontuais autônomas), a competição entre os indivíduos como regra básica do relacionar-se, o consumismo como afirmação de ser, o corpo (e seu cuidado) como unidade central – muitas vezes única – delimitadora do indivíduo em relação aos outros, bem como as estratégias de valorização do corpo, com o sentido de obter dinheiro, status e poder. As estratégias referentes a essa valorização são basicamente estéticas e incluem representações e imagens de juventude, beleza e força. Essas estratégias, dominantes na cultura, permeiam as representações e práticas de saúde, subsumindo-as e dirigindo-as no sentido da ratificação e do fortalecimento dos valores centrais da sociedade mencionados. Por outro lado, a questão das condições de vida, emprego, trabalho, qualidade de vida, no sentido social e psicossocial da expressão, ressurge, neste contexto, como lugar privilegiado não apenas teórico mas simbólico, na definição do que é saúde. Para muitos, atualmente, ter saúde é “poder trabalhar”, mas agora não mais no sentido de ter disposição ou força física para o trabalho, mas no sentido de estar empregado e, na melhor das hipóteses, de ter estabilidade no emprego. Este é o sentido socioeconômico mais amplo a que me referi, acima, do custo social da saúde. Esse sentido está também ligado a outro, ao de custos do cuidado médico (dos seguros e planos de saúde) no contexto atual de tecnificação da medicina e de sua absorção pela economia de mercado capitalista. Nesse contexto, a medicina vem-se transformando numa atividade de “produção de bens” (enquanto ofertante de serviços médicos) e em instância social de “consumo de bens” (pelo lado da “demanda” de serviços pelo paciente, reduzido a cliente).
 Deste ponto de vista, ter saúde significa, muitas vezes, não mais poder adoecer, não ter mais esse direito. Na verdade, adoecer significa, para muitos indivíduos e famílias, atualmente, seja na América do Norte ou na Europa, na América Latina ou na Ásia, perder o emprego, abrir falência, cair abaixo da linha da pobreza e de lá provavelmente não sair. Cuidar da saúde, ou “manter a saúde em forma”, implica  cuidar também do emprego  – portanto, da própria sobrevivência. A situação de insegurança e instabilidade torna-se, por sua vez, fonte dos constantes desconforto, inquietação e perturbação, designados como stress, que por sua vez  é gerador de adoecimento em grandes faixas da população. Além disso, a mudança econômica acelerada vem ocasionando acentuada desagregação de valores culturais, atingindo relações sociais e setores da vida social considerados estáveis até recentemente. A subversão de valores relativos a gerações, gêneros, sexualidade, formas de socialização baseadas na educação e no trabalho, além da ética das relações interpessoais, profissionais e políticas, tem gerado perturbação e agravos à saúde física e mental em parcela crescente de indivíduos na sociedade atual. 
Um grande mal-estar psicossocial está em curso, produzindo sintomas e síndromes indefinidos, muitas vezes não identificáveis pela medicina, responsáveis pela perda de milhões de horas de trabalho em todo o mundo. Configura uma grave crise sanitária e gera uma constante busca de cuidado das pessoas num conjunto de atividades, todas vistas como “de saúde”, dentre as quais sobressaem as terapêuticas ditas alternativas. 
A universalidade atual do paradigma ou utopia da saúde pode ser constatada não apenas na quantidade e na diversidade das atividades e práticas atualmente designadas como “de saúde”, mas sobretudo na tendência a ressignificar atividades sociais vistas na cultura como atividades lúdicas de jogo ou lazer, esporte ou recreação, estéticas, ou mesmo eróticas, como “atividades de saúde”. O esporte, a dança, o namoro, as relações sexuais, o alimentar-se, o dormir, o caminhar, o trabalhar, tudo pode e deve ser visto como prática de saúde. Ou de risco de doença, dependendo da intenção, da intensidade, da freqüência e da quantidade com que é feito. Pois todas as atividades devem ser praticadas com equilíbrio, comedidamente, isto é, sem excessos. Quero chamar a atenção para a questão do comedimento como uma das representações fundamentais da saúde, embora não única, na cultura contemporânea, originária da própria sociedade moderna burguesa.
 Todo excesso é visto, nesse contexto, como um risco à saúde, porque desequilibra, e o desequilíbrio gera o adoecimento, isto é, a chegada da doença. Entre pacientes da rede pública de saúde, por exemplo, encontra-se com muita freqüência uma representação auto culpabilizante dos “excessos” no comer, beber, ou em outros hábitos, como origem do seu adoecimento. A medida do agir, do comportar-se ou do controlar-se está nos sujeitos, pois são eles os responsáveis por não “danificar” sua saúde com excessos. A questão da “falta”, por outro lado, é sempre vista pela perspectiva do excesso de alguma qualidade vital negativa: a falta de exercícios, por exemplo, é sempre vista em função da vida sedentária, em que “sobra descanso” ou “inatividade física” e assim por diante. 
O equilíbrio, neste caso, é fruto não de balanceamento entre forças ou pesos opostos, mas de contenção, e a contenção supõe o autocontrole dos sujeitos. 
A contenção dos excessos, entretanto, não é o único modelo de comedimento presente na cultura contemporânea. Outros modelos de equilíbrio não se reduzem ao paradigma da normalidade / doença, fugindo ao modelo do comedimento ligado ao controle médico. Existem representações afirmativas de equilíbrio em grupos e coletividades na sociedade civil, associadas à vitalidade e sua conservação, ao aumento da “energia” (sinônimo de vitalidade, neste modelo), vista como força, juventude e beleza, ou harmonia, vistas, por sua vez, como sinônimo de saúde. Manter a saúde em forma é, neste caso, “manter a forma”, no sentido mais estético da palavra “forma”. Um conjunto muito importante de “atividades de saúde”, com um número crescente de adeptos, decorre desse modelo. Interessa assinalar aqui que é a estética, mais que a racionalidade médica e seus modelos (normalidade / patologia ou vitalidade / energia), o critério sociocultural de enquadramento dos sujeitos para determinar se realmente são “saudáveis”, ou se precisam exercer alguma “atividade de saúde”, através do estabelecimento de padrões rígidos de forma física. 
O verdadeiro mandamento da saúde está mais ligado à boa forma do que ao modelo doença / prevenção / cura. As representações e práticas atuais relativas à saúde, tanto as ligadas à biomedicina, como as que se ligam às propostas médicas vitalistas, ou mesmo às conhecidas como naturistas, estão profundamente atravessadas por representações estéticas do corpo, as quais estão, por sua vez, ancoradas nos valores individualistas dominantes na cultura contemporânea. Deriva dessa interpenetração simbólica entre saúde, influenciada pela ordem médica, pela estética e pelo individualismo, uma série de conseqüências interessantes em termos de representações, práticas e estratégias de inclusão / exclusão de indivíduos e grupos sociais. Chamo a atenção para atividades “de saúde” que se organizam na sociedade civil atual, destinadas a lidar, de acordo com os diferentes extratos sociais, sua mentalidade e inserção na estrutura de produção ou na cultura, com os processos de inclusão ou, mais freqüentemente, de exclusão social que decorrem da interpenetração mencionada acima. Essas atividades tendem a se tornar estratégias e táticas de resistência a esses processos, ou de criação de novos valores e práticas de sociabilidade. 
As “atividades de saúde” podem ser vistas, nesse contexto, como um tipo de estratégia de sobrevivência social, de rompimento com o isolamento provocado pela cultura individualista e narcisista que predomina na sociedade capitalista atual. A meu ver, elas manifestam a presença da diversidade das representações de saúde na cultura atual e o desenvolvimento de valores atuais concernindo a relações saúde / doença, corpo / mente, força / juventude, beleza / saúde, saúde / juventude etc. Abordarei o conjunto de “atividades” ou “exercícios” de saúde mencionadas há pouco, que são mais presentes nos grandes centros urbanos.
 Trata se das atividades físicas praticadas coletivamente no espaço das academias de ginástica, com predominância das faixas etárias mais jovens (18-35 anos) mas com tendência de expansão para faixas etárias mais avanças (40-60 anos), conforme reportagens e noticiários da imprensa escrita e televisiva. Tais atividades não procuram mais, como em períodos clássicos, “equilibrar mente e corpo” na busca do equilíbrio / saúde, mas fortalecer e tornar aparentes certos tecidos do corpo, “desenhando” músculos, “levantando” seios e nádegas, tornando fortes músculos e tendões, modelando, assim, uma imagem de saúde que associa força, juventude e beleza. A prática sistemática de exercícios repetidos sob ritmos variados, freqüentemente acompanhados por música coerente com tais ritmos, visando a pôr “em forma” o corpo, caracteriza esse conjunto de exercícios físicos como um movimento regido pela estética na cultura atual. Existem variadas formas de exercícios coletivos, conhecidos sob o título de atividades físicas, praticados às vezes no mesmo espaço, isto é, na mesma “academia”, que incluem diversos modelos e distintos paradigmas de “práticas”, do mais biomecânico ao mais bioenergético, que absorveram movimentos da yoga, da dança, das artes marciais etc.
 Há, no Rio de Janeiro, demanda de público para a prática de todas essas categorias de atividades. A demanda de público para a prática de todos esses tipos de atividades é crescente nas metrópoles atuais. O resultado esperado pela maioria dos praticantes dessas atividades é normalmente estético, e não propriamente de “saúde”. Entretanto, considera-se nesse meio que indivíduos não-praticantes estão “fora de forma” e não são, conseqüentemente, saudáveis. Como a busca da beleza / juventude é o grande empenho nessa atividade, muitas vezes há um excesso nas práticas mais hard do fisiculturismo, o que acaba danificando a própria saúde. É freqüente o uso de esteróides anabolizantes e outras substâncias químicas pelos praticantes de modalidades, como musculação, sobretudo os de sexo masculino, no sentido de fazer “crescer” os músculos, torná-los mais aparentes e evitar o cansaço para poder praticar mais exercícios. A busca de sucesso, status e dinheiro, assim como o consumismo associado ao “corpo em forma”, entre os jovens de classe média das academias, é perceptível, embora esses não sejam os únicos valores presentes. O corpo é representado como um capital potencial, um investimento que pode (e deve) ter retorno. Fica patente, nesse contexto, que o corpo individual é o centro do universo simbólico desse público, independentemente até de gênero.
 Relações sociáveis de cooperação que ultrapassem os umbrais do salão da academia, se existentes, são desconhecidas. É claro que essa caracterização é grosseira e está restrita às faixas mais jovens dos praticantes das atividades físicas mais hard. Todas as atividades físicas praticadas coletivamente em espaços fechados (ou mesmo abertos como parques, praças e jardins públicos) acabam levando a atividades de cooperação e de identidade de grupo, como passeios, excursões, festas de aniversários dos praticantes etc., mesmo nas academias de “malhação”. Entre as atividades físicas hard incluem-se as formas de ginástica aeróbica, em geral acompanhadas de tecnomusic ou ritmos semelhantes, conhecidas entre os brasileiros como “malhação”. As práticas mais “suaves” de exercícios físicos, como o alongamento, a hidroginástica, a yoga, a biodança e outras danças praticadas como ginástica (inclusive a capoeira) comportam outras representações de corpo e de saúde, em que energia, harmonia e equilíbrio aparecem como base da vitalidade. O próprio ritmo dos exercícios (e da música que os acompanha), com sua concepção implícita de tempo mais lento e mais “singularizado” (individualizado) dos movimentos, exclui a busca de “produtividade”, entendida como resultado imediato, que caracteriza a fisicultura. É necessário ressaltar, entretanto, que a prática continuada das atividades físicas tem como resultado corrente o fato de ampliar os limites corporais, o desempenho de atividades físicas e mentais, bem como a auto-estima dos praticantes. Como conseqüência, há a aquisição de progressiva autonomia face a medicamentos, próteses, aparelhos e outros procedimentos tecnológicos característicos da terapêutica médica ocidental. Os professores e instrutores de ginástica, alongamento, hidroginástica, dança, ioga, tai-chi etc. insistem, independentemente de seus paradigmas, na necessidade de os praticantes buscarem superar seus limites, indo sempre “um pouco mais além”, no sentido de adquirir mais vitalidade e autonomia.
 Essa contínua busca de superação representa uma competição cotidiana do indivíduo consigo próprio, o qual deve adquirir, com a prática, a percepção desses limites, evitando danos à saúde. No contexto das academias de aeróbica e musculação, entretanto, os indivíduos têm pressa em adquirir um corpo “saudável”, isto é, modelado, que possa ser utilizado como instrumento de ascensão ou promoção social, ou para a conquista de pares com mesmo nível de beleza e saúde no mercado sexual. E também para conseguir inserção no setor do mercado de trabalho baseado na forma estética do corpo, com as profissões de modelo, ator etc. A procura da juventude ou do rejuvenescimento através do exercício físico – a “forma física“ vista como saúde, e esta como decorrência da beleza, força e juventude – caracterizam o paradigma dessas atividades, bem como as representações que lhes são associadas. São paradigmas e representações enraizados na cultura de corpo dominante entre jovens de classe média das grandes cidades, associadas a uma florescente indústria de vestuário, cosméticos, alimentos e fármacos, totalmente voltada para a conservação ou recuperação da juventude, isto é, para a forma ou fitness. Sob a égide desse paradigma, um número crescente de adolescentes dessa classe faz apelo às cirurgias plásticas, no sentido de “corrigir defeitos” da natureza: a remodelação de orelhas de “abano” (descoladas) ou narizes grandes, a redução ou o aumento de tamanho dos seios configuram um conjunto de intervenções médicas visando a “restituir a auto-estima” ou a retirar do isolamento os jovens discriminados por suas “imperfeições” face ao rígido padrão atual de beleza, geralmente à custa de grande sofrimento físico e psicológico. À medida que se avança em faixa etária e se desce em estratificação social, a ênfase nesses valores diminui. A freqüência de mulheres de meia e terceira idades aparece como majoritária, como aliás em quase todas as atividades de saúde da atualidade. Uma suavização dos valores individualistas pode ser notada em aulas de academias freqüentadas sobretudo por mulheres nessas faixas etárias. Aparentemente elas buscam, através do cuidado com a saúde (e de uma sonhada recuperação da juventude), a ruptura do isolamento em que caem com freqüência as maduras e idosas, em nossa cultura, vítimas dos valores do corpo jovem e belo como critério de aquisição de status e de ascensão social. Mas é uma minoria de mulheres maduras ou idosas que deseja fazer a ginástica aeróbica, praticada geralmente pelos jovens. Nos espaços das academias, essas mulheres tendem a se sentir deslocadas e inferiorizadas, em função da depreciação de seu corpo. Além disso, os médicos desaconselham esse tipo de exercícios para pessoas acima de 40 anos, a não ser sob estrito acompanhamento. As mulheres maduras e idosas que desejam praticar exercícios físicos coletivos buscam modalidades mais “leves”, como a hidroginástica, a antiginástica e o alongamento. Uma parte crescente delas, sob influência da mídia, vem buscando os exercícios ligados às medicinas alternativas, como tai-chi-chuan, ioga, hidroginástica, biodança ou dança de salão. Neste caso, o paradigma da vitalidade / energia está presente, sendo a saúde representada como equilíbrio / harmonia. O corpo é representado como uma dimensão do sujeito, concebido como unidade bioespiritual. A busca da beleza e da forma associa-se à recuperação da saúde, flexibilidade ou rejuvenescimento. A cordialidade e a cooperação entre as praticantes são muito freqüentes, assim como as atividades comuns de congraçamento, incentivadas pelas academias, possivelmente para manter a unidade e a permanência das turmas. Desejo ressalvar, entretanto, que não são apenas as mulheres maduras e idosas que sofrem o isolamento na cultura dos corpos jovens, belos e fortes, isto é, dos corpos “saudáveis”. Também os homens de meia ou terceira idade – embora com menor freqüência que as mulheres, porque raramente estão sós – os obesos, os deficientes físicos e mentais em menor ou maior grau, e os jovens desprovidos de dinheiro e beleza estão, quando não discriminados, situados em lugares inferiores da escala social, onde o “capital corpo” está, por deterioração ou incapacitação, depreciado. 
A separação entre juventude e beleza é possibilitada não apenas por critérios estéticos, em que a diferença é vista como anormalidade ou anomalia (orelhas de “abano”, nariz ou seios grandes, excesso ou falta de altura etc.) mas também raciais. Freqüentemente um jovem negro ou mulato, maioria no país, pode ser visto como feio, já que o padrão internacional de beleza estabelece, ainda hoje, o branco de olhos azuis ou verdes como medida estética a partir da qual os indivíduos jovens são avaliados. O problema social grave é que esse cultivo de valores “estéticos” tende a acentuar o isolamento progressivo de um número crescente de pessoas, com a perda de sentido e horizonte para suas vidas, o surgimento do pessimismo e da desesperança, do medo e da desconfiança, com a conseqüente incomunicabilidade com outros seres humanos, e a presença crescente de angústia e depressão, que acabam levando ao adoecimento físico e mental.
 É compreensível, portanto, que uma parte considerável dos atendimentos em ambulatórios da rede pública das metrópoles brasileiras – acredito mesmo que de todo o mundo contemporâneo – estimada às vezes em cerca de 80%, seja motivada por queixas relativas ao que poderia ser designado como síndrome do isolamento e pobreza. Acentuo a palavra “pobreza” para salientar sua importância no momento atual da sociedade capitalista mundializada, com as conseqüências graves e duradouras que tem sobre as condições de saúde das classes assalariadas do planeta. Quero ressaltar que a situação socioeconômica vem sobredeterminar o isolamento já propiciado pela cultura individualista, piorando a situação de exclusão e de perda de horizonte vital dessas classes. Acentuo também que à pobreza psicológica e cultural onde vivem vem juntar-se a pobreza material, com seu cortejo de privações, de humilhações e de violência cotidiana crescente. Velhos e velhas, aposentados de ambos os sexos, desempregados de todas as idades e qualificação profissional, jovens empobrecidos pelo não acesso ao emprego ou por remuneração vil, menores abandonados, mulheres sós ou com família a seu cargo, configuram atualmente a população mundial majoritária. Também essa população quer ter saúde, ou ao menos escapar do fatalismo da doença e da morte precoce. Aqueles que não estão nas filas de atendimento dos serviços públicos despojados de autonomia em relação a sua saúde, irreversivelmente medicalizados, buscam também “cuidar” de sua saúde. Para essa imensa parcela da sociedade, que inclui estratos médios e baixos da escala social, obter saúde significa, em grande parte, ser cuidado. A saúde é, neste caso, representada como preservação da dor, do sofrimento, do envelhecimento e, na medida do possível, da morte precoce. Por outro lado, estar saudável é poder ter alegria, disposição para a vida, recuperar o prazer das coisas cotidianas e poder estar com os outros (com a família, com os amigos). Deste ponto de vista, ter saúde é poder romper com o isolamento provocado pelas situações a que a sociedade contemporânea relega uma parte importante de seus componentes, devido à idade, à doença, ao desemprego, à pobreza, considerando-se as principais fontes de isolamento. A saúde representa, neste caso, uma vitória contra a morte social. Em outras palavras, a conquista da “saúde” não deixa de ser, muitas vezes, fruto de uma vitória contra a cultura atual. É na faixa da população mencionada que se encontra uma parcela considerável da clientela das medicinas alternativas e naturalistas.
 É também nessa faixa que a representação de tratamento é mais perceptível como cuidado. Também é aqui que se pode encontrar com freqüência a busca de saúde como autocuidado, e mesmo como troca de cuidados, sobretudo na camada média com formação educacional universitária, acessível e sensível às doutrinas esotéricas, naturalistas, psicológicas e morais dos manuais de autocura new age em moda na cultura contemporânea. A busca contínua e constante de cuidado é parte de uma estratégia de ruptura com o isolamento, imposto pelo individualismo e pela constante ameaça de perda de status e de pobreza a que essa população está exposta. Considero importante ressaltar aqui o papel de ressignificação da saúde, do adoecimento e da cura que essas práticas ou terapias representam para seus doentes, e a contribuição que aportam para retirá-los do isolamento social da pobreza, do envelhecimento e da doença. As práticas ou atividades de saúde propiciadas por esses sistemas, sejam coletivas ou não, favorecem o estabelecimento da comunicação, de interações sociais, a formação de grupos, redes e mesmo movimentos – ainda que muito localizados – pela “saúde”, ou ao menos pela cura. Relações de solidariedade, ou de cooperação e apoio mútuo, ainda que localizadas, restritas ao espaço onde se desenvolvem as atividades de saúde, tendem a se estabelecer, tornando-se o ponto de partida para a renovação da sociabilidade, para a constituição de “novos amigos”, de “trocas” (de informações, experiências, conselhos e orientações) que vão aos poucos restaurando o tecido social comunicativo, com a criação e extensão de atividades para fora do âmbito das práticas de saúde16. O isolamento é aos poucos vencido pelas atividades, e ressurgem nos indivíduos o otimismo e a esperança, com o restabelecimento da confiança no outro, mesmo que no restrito grupo onde a atividade é exercida. Junto com esses sentimentos ressurge a saúde, ou a melhora. São essas formas de exercício focais de solidariedade que se tornam pequenos e múltiplos pontos de resistência ao individualismo dominante, colocando a amizade e a cooperação no lugar da competição. Embora esse tipo de relações seja especialmente favorecido pelas atividades mencionadas como parte da sociedade civil, isto não significa que não apareçam também em atividades e programas desenvolvidos em instituições médicas, como o hospital ou o ambulatório, ou em serviços públicos locais de saúde. No sistema brasileiro de saúde descentralizado (SUS) há vários desses programas, onde tais relações tendem a aparecer. Podem aparecer até mesmo em filas de espera de atendimento. É importante assinalar, finalmente, que a tendência a incluir tais práticas na rede pública de serviços é ascendente, sendo propiciada pela política de saúde descentralizadora vigente no país. A tendência ao crescimento dessa incorporação está estreitamente ligada, a meu ver, ao papel que a cidadania poderá representar na descentralização das políticas públicas nos próximos anos.







Fonte Os Sentidos da INTEGRALIDADE na atenção e no cuidado à saúde
Políticas de Descentralização e Cidadania: Novas Práticas em Saúde no Brasil Atual
MADEL T. LUZ

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