7 de jan. de 2022

As possibilidades geradas pela mecanização Portuária

Já no que se refere à mecanização, parece haver uma concordância entre os trabalhadores de que ela mudou o perfil daquele trabalho portuário essencialmente braçal, interferindo na venda da força de trabalho, o que ocorre, pois a mecanização é fruto de processo histórico. Marx salienta:

“A natureza não produz, de um lado, possuidores de dinheiro ou de mercadorias, e, do outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Esta relação não tem sua origem na natureza, nem é mesmo uma relação social que fosse comum a todos os períodos históricos. Ela é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, do desaparecimento de toda uma série de antigas formações da produção social”.

Os arrumadores sentem-se mais valorizados no ambiente de trabalho, pois a lei, aliada ao processo de mecanização das atividades portuárias, trouxe aquilo que chamam de profissionalização, como se antes a condição de braçal não motivasse uma posição profissional ao trabalhador.

“Hoje com certeza, mudou meu ponto de vista quanto à minha profissão. [...] Cursos de capacitação fazem que o cara volte a aprender e a evoluir” .

Embora a mecanização reduza os postos de serviço, oferece um novo status com a divisão do trabalho, pela qual “[...] desenvolvem-se [...] diferentes grupos entre os indivíduos que cooperam em determinados trabalhos”.

“A tecnologia mudou muito. A gente primeiro tinha serviço de pá. Hoje, não tem. Tudo é aparelho”.

A divisão do trabalho no ambiente portuário indica a cisão entre homens e máquinas, mostrando-se no espaço intra-específico. Os motoristas e operadores buscam a posição social através da posição técnica do trabalho. Se a modernização trouxe a diminuição do trabalho, há uma concepção de que o trabalhador pode se colocar frente a isso, por meio da sua capacitação.

“Não assusta os que estão tendo uma visão de futuro. Porque quem tá se aprimorando dentro do contexto, não tem muito medo aí não da instrumentalização profissional”.

O valor da força de trabalho está diretamente relacionado ao seu grau de capacitação, ou à habilidade. O próprio trabalhador tem consciência dessa relação quando reflete que a necessidade da especialização: “tira do mercado o pessoal que não tem condições de se habilitar, boa parte das pessoas” .

Essa relação incongruente entre escolaridade e capacitação indica o não atendimento da dignidade humana no processo de trabalho. Isso porque “com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre o interesse de cada um dos indivíduos [...] e o interesse comunitário de todos os indivíduos que mantêm intercâmbio uns com os outros”.

Os mais velhos afastam-se naturalmente da nova possibilidade, pois o tempo de trabalho mostra uma rigidez na forma de eleger o novo na ação de todos. Alguns, no entanto, conseguem superar suas próprias dificuldades.

“É claro que ainda têm aqueles bitolados, que não se abrem, mas a grande maioria foi buscar um pouquinho de conhecimento. [...]” .

Ao trabalhador que está sendo cerceado pela sua própria condição, um conselho amigo tenta avisar que mais cedo ou mais tarde a especialização não poderá ser detida e, nesse sentido, é preciso acelerar o impulso pela busca de melhores condições:

A qualificação é um assunto primordial à atual estrutura do trabalho portuário avulso. Com a mecanização veio a especialização e as disputas entre os trabalhadores. Quem consegue habilitação técnica passa a concorrer a escalas especiais, não atingidas por aqueles que insistem em relegar o treinamento para um segundo plano.

“Eu quero que todo mundo se aperfeiçoe no trabalho, entendeu? Acho que é importante pra todo mundo ir no mesmo nível”.

Também chamada de profissionalização, a especialização divide opiniões e uma delas diz que o OGMO é o culpado pelas diferenças de capacitação surgidas entre os trabalhadores, tratando de forma desigual um ambiente que antes era integrador.

“Através desse OGMO, tá havendo essa diferença. O OGMO me botou eu como operador, não me botou como guindasteiro... Eu queria assim, que ele desse oportunidade pra todo mundo. O OGMO tá dividindo as categorias, dividindo as classes do sindicato”.

Pelo declarado, a qualificação da mão-de-obra avulsa, uma das principais atribuições do OGMO, não é homogênea, isto é, faltam oportunidades e vagas nos cursos. Além disso, essa situação relatada parece abrir uma competição entre os trabalhadores pelas fainas mais especializadas. No caso dos arrumadores, há uma procura pelo curso de guindasteiro.

“Não me deram a oportunidade pra fazer, exigiram o primeiro grau. Então é aquela diferença. [...] Se eu não soubesse fazer a feição, o outro ia fazer pra mim, nós ia dividir, só pra mim não perder”.

A auto-organização nesse ambiente de trabalho, instigada pela transformação da nova lei, remete a uma reflexão ética sobre a exclusão no grupo, quanto às circunstâncias de idade, escolaridade e habilidade. Antes, todos eram braçais; agora, alguns são qualificados. Atlan , no entanto, pondera quanto à relatividade de se pensar sobre o sofrimento ou a felicidade de cada indivíduo na singularidade. Ele alerta para a necessidade de enxergar a história particular das sensibilidades de um grupo social.

Efetivamente, as singularidades surgem e mostram o quanto um processo de autoorganização compõe-se de oposições. Por exemplo, também é possível elencar aqueles trabalhadores que percebem o aprimoramento como suporte para acabar com a competição, tornando os trabalhadores mais próximos uns dos outros, a partir do momento em que se tornam mais esclarecidos e passam a buscar o mesmo ideal:

“Nós temos que se atualizar e se manter mais próximos uns dos outros pra que o trabalho consiga fluir com mais técnica, mais vontade. Dar uma nova imagem ao trabalho, melhorar a qualificação dos trabalhadores”.

O relacionamento torna-se mais cooperativo e solidário em busca da sobrevivência do grupo que deseja valorizar esse novo trabalhador que nasce da modernização portuária, um trabalhador mais qualificado e preparado diante das inovações tecnológicas. Isso pode ser considerado como reflexo da auto-atividade desse indivíduo que está inserido nesse ambiente de trabalho e contribui para a ação coletiva.

 “O resultado que se obtém ligando o presente com o passado e o futuro se consegue também na sociedade mediante o agrupamento de uns homens com os outros” . O agrupamento ou associação de trabalhadores no ambiente de produção, mesmo que indiretamente, remete a novos valores.

“[...] a gente tem que saber mexer no maquinário, tem que acompanhar a tecnologia”.

Este trabalhador refleti sobre a necessidade de que é preciso, de alguma forma, acompanhar a evolução do tempo, interligando o passado, o presente e o futuro.

O arrumador deseja  poder compartilhar a atividade dos estivadores através da multifuncionalidade prevista em lei.

“O pessoal já tá enxergando que precisa mudar [...] pra buscar um mercado de trabalho melhor pra gente. O pessoal tá procurando ler a Lei 8.630; antigamente, quando era uma lei, jogava do lado e não queriam nem saber” .

 

GARCIA, Maria Lucilene Zafalon. A auto-atividade na educação ambiental, uma ferramenta pra a ação “no fazer” humano: o ambiente transformador do trabalho portuário avulso do Rio Grande. Rio Grande, 2005, 157f. Dissertação (Mestrado em Educação Ambiental) Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental. Orientador(a): Marta Regina Cezar-Vaz

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